7 de mar. de 2014

Uma história de carnaval


Este ano não fui para Maricá, como de hábito, e resolvi reler um livro que gosto muito: Dom Casmurro, de Machado de Assis. Desde a juventude, é a terceira ou quarta vez que o leio. Desta feita, por andar com veleidades de escritor neófito, li-o com atenção redobrada, cuidando das palavras desconhecidas ou pouco íntimas, dicionário ao lado; e do estilo do autor, de sua técnica narrativa, de como vai construindo a trama, à maneira de um delicado mosaico, peça a peça, sutileza a sutileza, deixando pistas aqui e ali, um argumento acolá, novos indícios e dúvidas mais além.
Trata-se do clássico e sempre recorrente triângulo amoroso: neste caso Bentinho, Capitu e Escobar. Mas é, antes de tudo, o romance da dúvida. Dúvida para o leitor, que ao fim não tem convicção formada: Capitu traiu ou não traiu? Depende do leitor; em verdade ninguém sabe, ninguém viu.
E que mulher, a Capitu! Ah! Bentinho, por que tinhas de ser tão casmurro? Tão melhor seria que fosses mais generoso e menos ciumento, e assim viverias o resto dos teus dias navegando num mar de delícias com a tua Capitu… Mas neste caso também não teríamos esta obra prima do bruxo do Cosme Velho…
…Perdão, leitores. Perdoem o meu envolvimento. Eu pretendia contar uma história de carnaval, se é que não me enganei no título. Pois vamos a ela, sem mais delongas.


Li pra mais da metade do livro na segunda-feira de carnaval. À noite recebi uma ligação da mãe de Yasmin, que voltou a morar com a pequena na vila militar do Galeão, convidando para um churrasco em sua casa, na terça. Fui. Numa sacola levei 1Kg de contra-filé e uma sobremesa preparada por Rita, que não quis ir. Para ler no ônibus, levei o Dom Casmurro. Antes não levasse…
Depois do churrasco que, para desgosto do meu estômago foi servido lá pelas tantas da tarde, fomos todos espairecer no Complexo Recreativo, onde nesses dias sempre rola alguma coisa. As mesas da varanda quase lotadas, crianças fantasiadas dentro do salão, brincando com serpentinas e confetes. Deliciosas marchinhas carnavalescas – dos carnavais antigos – é o que havia de festa momesca. Não que a família militar não seja animada  – já fui a grandes bailes de carnaval em clubes militares – mas há que ter quem os organize e o Complexo serve mais para comemoração de aniversários, batizados, natal e outras datas do tipo, em suma, para a distração, o divertimento e a prática de esportes no dia-a-dia dos moradores da vila.
Sem ânimo momesco nas veias - lembrem-se que estava lendo um livro -, dei uma espiada no salão e dirigi-me discretamente para a varanda dos fundos, onde também há um barzinho, no pressuposto que meus acompanhantes preferissem ficar na frente. Sentei-me e ataquei de Dom Casmurro.
Dentro em pouco estava rodeado por meus convivas e mais além três mesas se juntavam para acomodar uma família, esta sim, com espírito carnavalesco: os dois homens, um mais ou menos da minha idade e de cabelos brancos e o outro mais jovem, que mais tarde vim a saber tratar-se de seu genro, ambos fantasiados de mulher. O senhor de cabelos brancos eu já conhecia desde a matinê de domingo, quando estive no local acompanhado por Rita, Yasmin e seus familiares. Na ocasião, este senhor, enfiado no mesmo vestido e a cara borrada de maquiagem, sapecara-me um beijo no rosto com as graças típicas e caricatas da fantasia. Tudo se deu entre risos e galhofas.


Como os do meu grupo aparentemente não se incomodavam que estivesse lendo, continuei lendo. A certa altura o senhor/senhora de cabelos brancos, dirigindo-se ao banheiro masculino, parou ao meu lado e, com trejeitos afetados e voz de falsete feminil, convidava-me ao banheiro para ajudá-lo num “serviço”. Já meio sem jeito, mas ainda com ferpley, disse-lhe que não fazia serviços desse tipo; rimos e apertamo-nos as mãos. E foi risota geral.
Agora a trama estava chegando ao clímax, atenção redobrada na leitura, foco total na desventura dos dois amantes; eu não estava ali com os meus, estava com Bentinho e Capitu… Então veio o susto e a minha reação automática e incontrolável, como no estouro inesperado de um rojão: levantei-me quase de um pulo, abrindo  os braços e afastando com energia as duas “senhoras” importunas que tentavam beijar-me o rosto, uma de cada lado.
- Não! Não! Brincadeira tem limite, pô!
Não, creio que não disse palavrão, mas não estranharia se tivesse dito. Assustei-me com a surpresa do ataque das “senhoras” num momento de extremo envolvimento literário. Quase fervi de irritação por me terem tirado do enleio em que me achava. Desta vez não houve risos, mas caras espantadas.
Escusado dizer que dali em diante não havia clima para continuar lendo; terminei o livro na quarta–feira de cinzas.
Já calmo, passei na mesa das “senhoras”, expliquei-lhes a minha reação e pedi desculpas; também as recebi, efusivamente, com apertos de mãos e tapinhas nos ombros.
E o riso voltou. Era carnaval. Evoé, Baco!

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Me faça esse carinho 

5 comentários:

Denise Kirsch Oliveda disse...

Meu querida vô Tinoco, nem mesmo a companhia de Capitu me faria ir a uma festinha de carnaval. Adorei seu texto!
Um abraço querido,
Denise - dojeitode.blogspot.com

Denise Rangel disse...

Não pude deixar de observar a escrita impecável desta crônica adorável. Até que foi bem-humorado. Eu teria perdido a paciência antes. Quanto à Machado, sempre digo que é preciso maturidade para lê-lo e compreendê-lo.
Abraço, garoto

Beatriz Paulistana disse...

Boa tarde amigo Tonico!!!
Já li Dom Casmurro na minha adolescência...e lendo seu post me recordei e senti saudades...
Quanto ao Carnaval...por aqui curtimos apenas em casa mesmo...esposo em época de feriado trabalha dobrado. rsrsrs
Feliz e Abençoada Tarde!!!
Abraços da Bia!!!

Luma Rosa disse...

Que boa leitura, Tonico!
Eu não teria concentração para ler em meio a tanta folia. És um herói!
Imagino a cara das senhoras! Tudo resolvido, então está tudo bem!
Amor sofrido o de Bentinho!
Beijus,

Toninho disse...

Na minha juventude incentivado por uma freira professora de literatura aprendi a ler e gostar de Machado, e o devorei, inclusive comprei uma coleção obras completas,incluindo ensaio teatrais.Ainda hoje tenho Machado como o Grande da literatura. Dom Casmurro li por prazer e depois por recomendação de vestibular.
Mas o lugar meu amigo confesso que nao era o ideal, mas voce com maestria soube se sair bem e ainda ali degustou.

Um abração e bom fim de semana com paz e alegria.

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