12 de dez. de 2015

Delicadezas de Jussara

Desde o formato às ilustrações de "Breve Lua", de Jussara Neves Rezende: delicadezas!
Mas não se engane o leitor com o substantivo que uso ou com o adjetivo "breve" utilizado por Jussara em seu título, para daí concluir tratar-se de poesia leve, superficial ou meramente gentil e romântica. Não! A poetisa mergulha fundo nas inquietações e ânsias da alma humana, talvez mais da feminina, como de resto já o fizera em seu primeiro livro, o "Minas de Mim".
Vejam este poema de 1987:

Dança
Loucas bailarinas
flutuam sobre as águas
ao som do riso da lua.

Assustados pirilampos
e florinhas curiosas
são adornos para a dança
enquanto gargalha a lua.

Flutuam coloridas
as bailarinas da lua.
Se há silêncio, mergulham.
O riso as põe a dançar.

O motivo dos versos não poderia ser mais trivial: os reflexos oscilantes da lua num espelho d'água. Certamente todos nós já vimos imagens da lunar dança, mas só os poetas sabem revelar a poesia que a envolve, ou inventar a que ela enseja (ai, que inveja dos poetas!). Jussara vai além, creio eu, nos dois últimos versos, remetendo o leitor aos silêncios e risos - não os da lua - mas a risos e silêncios da humana alma.

Quanto às ilustrações, deixo aqui um depoimento insuspeito: o de Yasmin. Disse-me ela:
- Sabe vô, desculpa, mas esses desenhos são melhores que os teus...
E tem razão a crítica de arte Yasmin Júlia. O traço simples e espontâneo, as delicadas texturas a grafite e as composições primorosas, como a da menina de guarda-chuva em direção à lua, são, para além dos poemas, outro ponto a destacar no "Breve Lua".
Evoé, Jussara!


Saiba mais sobre "Breve Lua" e Jussara Neves Rezende aqui e aqui 


1 de dez. de 2015

Conto de Natal

     
        É consoada de Natal. Sobre a mesa pernil assado, peru à Califórnia, bacalhau à portuguesa, arroz à grega, maionese, pastéis; e rabanadas, aletria, pudim, frutas tropicais, pêssegos, ameixas, figos secos, castanhas, nozes e avelãs. E há vinho do bom no refrigerador, e cervejas e refrigerantes.
          Harre! que muita fome se passa nos outros dias!
          Já não há pacotes de presentes sob a árvore de natal: os meninos cresceram.
          Daniel belisca uns pastéis e sai: haverá tempo de saborear aquelas iguarias, que afinal vão rolar da geladeira à mesa durante dias. É a primeira vez que sai à noite sozinho. Vai ao encontro de um amigo, a sobra da mesada no bolso; vai deitar conversa fora, tantas coisas a dizer do mundo que se desvenda, e beber uma cerveja no bar do Pita, esta sim de sabor especial – o adolescente sabor da transgressão.
          Num banco da praça do teatro senta-se à espera. Fiéis entram na igreja aos primeiros ritos da missa do galo, que já se não reza à meia-noite como dantes, mas bem mais cedo, às 21 horas, que é perigoso para um filho de Deus andar tarde da noite na rua.
          Alheio ao que se passa na igreja, Daniel repara noutra cena que seus olhos nunca haviam visto nem sua mente jovem conhecera ou sequer suspeitara: três homens, moradores de rua, preparam uma tosca ceia natalina junto à grade que protege a lateral do teatro.


"Velas e bolas natalinas" - original pintado com a boca por Mariam Paré
Pintores com a boca e os pés

          Em lata sobre três pedras a servir de trempe, um dos homens corta a canivete um molho de couves, do jeito que viera da banca do verdureiro, com talo e tudo. A um canto, no chão, um pedaço de mocotó, descourado, raspado mesmo, e esvaziado de seu conteúdo. Daniel não tem dificuldade em adivinhar o primeiro prato do cardápio: cozido de lascas de couro com tutano e couves. O outro prato, talvez o mais ansiosamente desejado, prepara-o um dos outros dois, enfiando num pedaço de vergalhão algumas asas de galinha. O que parece ser o “chef” daquela cozinha improvisada e rústica pega do companheiro o vergalhão, dá mais uma ajeitada nas asas e escora-o na lata, que já ferve e denuncia pelo odor a natureza do cozido. O terceiro homem, que desmancha um caixote para alimentar o fogo, pega a garrafa de Pitu e bebe um gole, passando-a ao que espetara as asas no vergalhão, que faz o mesmo. Ao “chef”, que vigia as asas de galinha a chamuscar ao fogo, resta apenas jogar fora a garrafa vazia.
          Afinal o amigo chega e Daniel levanta-se e vai com ele ao bar do Pita. Já não pensa na cerveja nem atenta ao que o amigo diz, seu pensamento ficou lá na lateral do teatro. Tão falador que é, vai quase calado, respondendo ao amigo por monossílabos; tem vontade de falar, mas as palavras que brotam de sua mente engasgam na garganta, confusas, contraditórias, caóticas. O amigo nota algo de errado:
          - Tudo bem, parceiro?
          - Tudo mal... tudo mal...
         Chegando ao bar, Daniel tira do bolso uns trocados, confere e vai ao balcão do estabelecimento, voltando com uma garrafa de cachaça na mão. E retoma o caminho de volta à praça do teatro. O amigo segue-o, sem questionar ou dizer palavra. Na lateral do teatro, aproxima-se do “chef”, estende a mão com a garrafa e saúda:
          - Feliz Natal!
          O homem recebe a garrafa com largo sorriso, abre-a com os dentes e sorve um primeiro gole:
          - Obrigado, sangue bom! Quer um gole, uma asinha de galinha?
       Daniel agradece e afasta-se, ainda acenando e desejando boas festas, com algum alívio no coração e a inocência perdida.