26 de set. de 2015


O buraco do sino

Andei por aí com um amigo de infância muito querido. Não lembro por onde andamos, o que fizemos, nem o que comemos, nem o que bebemos. Devo ter bebido demais. Só lembro da volta, daquele maldito ônibus chaqualhando, tarde da noite, cheio de boêmios e gente esquisita. Ou eu é que estava esquisito? Fora do ônibus, breu puro! Impossível reconhecer o ponto a descer. Por que ficamos até tão tarde na rua? Já não tenho idade para essas extravagâncias!
Meu amigo, porém, estava alerta e acenou-me para descer. Aos trancos e barrancos entre as gentes esquisitas, cheguei à porta e saltei. O ônibus partiu desabalado. Procurei por meu amigo entre as pessoas que ali estavam e não o achei. Pensei que descera na minha frente, mas não - foi-se com o maldito ônibus!
Agora estava eu ali, sozinho, num lugar desconhecido e entre gente desconhecida. Procurei situar-me. Perguntei que lugar era aquele, já me denunciando como forasteiro. Disseram-me: - Buraco do sino. Nunca ouvira falar de tal lugar. Mas o lugar não era mau, até um pouco bucólico: algumas casas esparsas, outras agrupadas, e muito verde; ruas sinuosas e estreitas, mas calçadas. Não era um buraco, mas uma encosta de morro. Uma favela? Talvez, mas muito diferente das que eu conhecia. Das que conhecia de vista, pois nunca antes subira numa favela.
De repente senti a mão da loirinha sarará que estava ao meu lado pressionar-me a calva, e algo pontudo  e duro espetar-me as costelas; um bafejamento quente segredou-me ao ouvido: - Perdeu, passa tudo. Querendo evitar qualquer movimento brusco ou desajeitado que pudesse assustá-los, disse à mocinha: – Posso pegar a carteira ou…? Ela disse: – O senhor mesmo pega. Nervoso, atrapalhei-me com a carteira e a mocinha tomou-a de mim e fez a limpa, largando-a no chão. Afastaram-se calmamente, a loirinha e os dois comparsas negões. Ela ainda me aconselhou: – Senhor, não ande assim tão tarde na rua. É perigoso.
Safada! E eu nem fiquei com raiva dela!
E as pessoas que estavam ali no ponto de ônibus parece que nem notaram o que aconteceu comigo!
Sem dinheiro (um mísero trocado que fosse, para a passagem do ônibus!), sem identidade, CIC, cartão de crédito; sem leira nem beira, assim eu fiquei no Buraco do sino!
Era urgente sair dali, pedir carona num ônibus, o motorista haveria de entender. Vinha um em sentido contrário ao meu rumo, não importava, era esse mesmo - urgia sair! Mas o coletivo bifurcou noutro rumo, enganando-me. Então enveredei por um beco, escadas aqui e ali, no intuito de cercar o ônibus na rua mais acima. Fui parar num terreiro entre barracos e mato, uma espécie de oficina mecânica de carros, mecânico mal-encarado, talvez nem oficina fosse, mas um desmanche. Voltei e desci as escadas, quando subiam, em fila, vários homens nada simpáticos e que portavam nas mãos instrumentos que não defini bem, nem queria definir. Esgueirei-me entre eles e sumi dali!
Tentei um táxi, não tinha dinheiro, mas importante era sair dali e chegar em casa, então daria um jeito de pagar ao taxista. Veio um: lotado. Veio outro, vazio, mas nem ligou pra mim. Filho da …!
Desanimado, encostei-me num canto ao lado de um comércio, uma birosca, onde homens bebiam e falavam animadamente. Cantoria no ar. Um canto solene e suave. Meninas vestidas de branco, em procissão, chegavam ao lugar onde eu estava. Pararam. A da frente voltou-se para mim e olhou-me longamente sem dizer palavra. Pareceu-me que esperava uma atitude minha. Entendi que estava no lugar errado, na hora errada, eu mesmo uma pessoa errada naquele contexto. Entendi que estava, talvez, profanando um lugar sagrado para aquelas meninas, que ali iam ofertar seus mimos e cantar seus cantos para algum santo que eu desconhecia.
Afastei-me. Atravessei a rua e desci por uma escadaria sinuosa (como eram sinuosos e incertos aqueles caminhos!), intermitente e intercalada por patamares de chão batido. Parei em frente a uma casa, mais para casebre, onde havia pessoas conversando. Um senhor, idoso como eu, deu-me um dedo de prosa. Não lembro o que conversamos, mas as pessoas me pareceram simpáticas e acolhedoras. E aquele lugarzinho, aconchegante.
Olhei para além: não vi mar nem horizonte. Mais perto e mais para baixo, outra encosta alevantada, esta de rocha pura, nua, negra e lúgubre. E imensos nichos escavados nela, lembrando portais góticos. Não vi imagens. Apenas nichos vazios de uma catedral insólita. No buraco do sino.

Sempre que adormeço de bruços, tenho pesadelos. Raismaparta!!!

O amigo de infância que me deixou só, era o Ismael, de Minas do Palhal – Portugal. A catedral insólita me pareceu (sem os nichos) a imensa rocha que há por trás da levada, na mesma aldeia, e por cuja várzea eu brinquei, enquanto as ovelhas pastavam (esta última associação não a fiz durante o sonho, mas enquanto escrevia esta crônica).

Que me dizem disto, caríssimos psicólogos e decifradores de sonhos?