Como todos sabem, estou brincando de construtor. Tenho tido, no entanto, oportunidade de observar fatos muito além da construção em que estou envolvido. Fatos de uma outra construção, infinitamente profunda, misteriosa e bela.
Há na casa um corredor lateral e externo ao qual se tem acesso apenas pelos fundos. Fui lá, com vassoura em punho, promover uma faxina com o fito de preparar uma concretagem.
No fim do corredor, camuflado pelas folhas secas caídas da mangueira vizinha, um filhote de sabiá- laranjeira assustou-se comigo (e com a vassoura) e correu atrapalhadamente até conseguir alçar pequeno voo. Postou-se empoleirado sob um andaime. O pequeno peralta caíra do ninho, possivelmente da mangueira.
Não vendo os pais nas proximidades, preocupou-me a sorte do bichinho. Ao menos, pensei, vou dar-lhe água e o mais que puder para salvá-lo. Levei-lhe a água num pires, mas ele nem ligou, aparentemente desconhecendo a natureza e o valor do líquido, acostumado que ainda estava em receber todo o alimento do bico dos pais.
O bichinho estava quase completamente emplumado, as penas do peito já alaranjando, era macho, sim senhor, mas bebê, e assustou-se com o pires e a minha insistência. Voou tentando ultrapassar o muro, não conseguiu e foi ao chão. Neste momento chegaram os pais, vigiando da árvore do outro lado do muro.
Bem, acharam-no, se já não o haviam achado antes, agora é com eles, pensei.
Fui trabalhar dentro da casa, pois nada poderia fazer naquele corredor em virtude do drama ali desenvolvido. Mas, curioso, vigiei discretamente.
Na primeira espiadinha vi a senhora sabiá, de corpo esbelto e elegante em seu costume cinza básico, sob umas tábuas encostadas à parede, piar como quem diz: vem para cá, filho, aqui é mais protegido, vem. Mas qual! Viu-me e voou para longe. O pequeno voou novamente para o poleiro sob o andaime.
Eu precisava ser mais discreto, mas a curiosidade não me deixou. Surpreendi o senhor sabiá num voo rasante ao muro, logo revertido assim que me viu, não sem antes soltar no ar um pio misto de ameaça e desespero, para meu espanto, acostumado que estava com seu belo cantar matinal.
Toda a tarde foi uma rotina só: senhor e senhora sabiá abasteceram o papo do filhote. Ao final da tarde, quando da última espiadinha, o filhote estava lá no poleiro, tranquilo e esperto, ajeitando as penas com o bico.
Amanheci com o cantar do senhor sabiá, que nunca me pareceu tão exuberante e belo.
Após um café na padaria , dei mais uma espiadinha. O filhote não estava mais lá; dele, só uns cocozinhos no chão.