É consoada de Natal. Sobre a mesa pernil assado, peru à Califórnia, bacalhau à
portuguesa, arroz à grega, maionese, pastéis; e rabanadas, aletria, pudim,
frutas tropicais, pêssegos, ameixas, figos secos, castanhas, nozes e avelãs. E há
vinho do bom no refrigerador, e cervejas e refrigerantes.
Harre!
que muita fome se passa nos outros dias!
Já não
há pacotes de presentes sob a árvore de natal: os meninos cresceram.
Daniel
belisca uns pastéis e sai: haverá tempo de saborear aquelas iguarias, que
afinal vão rolar da geladeira à mesa durante dias. É a primeira vez que sai à
noite sozinho. Vai ao encontro de um amigo, a sobra da mesada no bolso; vai
deitar conversa fora, tantas coisas a dizer do mundo que se desvenda, e beber
uma cerveja no bar do Pita, esta sim de sabor especial – o adolescente sabor da
transgressão.
Num
banco da praça do teatro senta-se à espera. Fiéis entram na igreja aos
primeiros ritos da missa do galo, que já se não reza à meia-noite como dantes,
mas bem mais cedo, às 21 horas, que é perigoso para um filho de Deus andar
tarde da noite na rua.
Alheio
ao que se passa na igreja, Daniel repara noutra cena que seus olhos nunca
haviam visto nem sua mente jovem conhecera ou sequer suspeitara: três homens,
moradores de rua, preparam uma tosca ceia natalina junto à grade que protege a
lateral do teatro.
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"Velas e bolas natalinas" - original pintado com a boca por Mariam Paré
Pintores com a boca e os pés |
Em
lata sobre três pedras a servir de trempe, um dos homens corta a canivete um
molho de couves, do jeito que viera da banca do verdureiro, com talo e tudo. A
um canto, no chão, um pedaço de mocotó, descourado, raspado mesmo, e esvaziado
de seu conteúdo. Daniel não tem dificuldade em adivinhar o primeiro prato do
cardápio: cozido de lascas de couro com tutano e couves. O outro prato, talvez
o mais ansiosamente desejado, prepara-o um dos outros dois, enfiando num pedaço
de vergalhão algumas asas de galinha. O que parece ser o “chef” daquela cozinha
improvisada e rústica pega do companheiro o vergalhão, dá mais uma ajeitada nas
asas e escora-o na lata, que já ferve e denuncia pelo odor a natureza do
cozido. O terceiro homem, que desmancha um caixote para alimentar o fogo, pega
a garrafa de Pitu e bebe um gole, passando-a ao que espetara as asas no
vergalhão, que faz o mesmo. Ao “chef”, que vigia as asas de galinha a chamuscar
ao fogo, resta apenas jogar fora a garrafa vazia.
Afinal
o amigo chega e Daniel levanta-se e vai com ele ao bar do Pita. Já não pensa na
cerveja nem atenta ao que o amigo diz, seu pensamento ficou lá na lateral do
teatro. Tão falador que é, vai quase calado, respondendo ao amigo por monossílabos;
tem vontade de falar, mas as palavras que brotam de sua mente engasgam na
garganta, confusas, contraditórias, caóticas. O amigo nota algo de errado:
- Tudo
bem, parceiro?
- Tudo
mal... tudo mal...
Chegando
ao bar, Daniel tira do bolso uns trocados, confere e vai ao balcão do
estabelecimento, voltando com uma garrafa de cachaça na mão. E retoma o caminho
de volta à praça do teatro. O amigo segue-o, sem questionar ou dizer palavra. Na
lateral do teatro, aproxima-se do “chef”, estende a mão com a garrafa e saúda:
-
Feliz Natal!
O homem
recebe a garrafa com largo sorriso, abre-a com os dentes e sorve um primeiro
gole:
-
Obrigado, sangue bom! Quer um gole, uma asinha de galinha?
Daniel
agradece e afasta-se, ainda acenando e desejando boas festas, com algum alívio
no coração e a inocência perdida.