Sentado num banco do Passeio Público, eu acabava de ler o que de interessante achara no jornal, sem mais o que fazer além de aproveitar a sombra do arvoredo e olhar o entorno. Fazia hora para assistir à matinê do cine Palácio.
Um mendigo aproximou-se e pediu um cigarro. Dei. Mas considerei de bom alvitre afastar-me dali, movimentar-me, evitando assédios semelhantes ou piores. A matinê ainda demorava.
Transitei pelas ruelas tortuosas do jardim, observando as árvores, as plantas, o lago e as esculturas, e lamentando o péssimo estado de conservação de tudo aquilo. Parei na Fonte dos Amores, obra do Mestre Valentim. A conservação não era melhor (isto foi antes da restauração de 2004).
Perto da fonte, duas meninas pré-adolescentes, magras e andrajosas; uma de pé, a outra agachada lavando trapos nas águas verdes do lago. Mais velhos, mas pouco mais que meninos, dois rapazes conversavam e fumavam. Outro menino, o menor do grupo, mas talvez de idade superior à que permitiria supor o seu corpo miúdo, destacou-se dos parceiros de infortúnio e caminhou para mim.
Tive vontade de sai dali, de fugir ao assédio cujo resultado eu adivinhava.
- Tio, me paga uma quentinha?
- Filho, você não quer um saco de pipoca, uns doces? – tergiversei, na tentativa mesquinha de aliviar o bolso. Que criança não gosta de guloseimas?
- Não, tio. Eu quero comida, uma quentinha bem cheia.
- Está bem, eu pago a quentinha. Vamos.
- Tio, dá pra você pagar uma quentinha pra minha irmã?
Olhei as duas meninas. A que lavava trapos parou de lavar, ergueu a cabeça e olhou-me longamente sem dizer palavra. Nem precisava, seus olhos diziam tudo.
- OK, mais uma quentinha – conformei-me. Vamos buscá-las.
Alguns passos além e gritaram-me pelas costas:
- Tio, trás uma quentinha pra mim também?
Era a outra menina. Concordei - quem paga duas, paga três -, mas que ficassem ali, eu traria as quentinhas. Apressei-me, temendo que os outros pedissem também; nesse caso o meu orçamento ficaria seriamente comprometido, talvez nem desse para ver o filme. Disse-me o menino:
- Tio, a minha eu quero com bastante arroz, feijão e macarrão, tá?
Perguntei-lhe se sabia onde forneciam quentinhas; sabia, claro, e levou-me a um restaurante na Rua das Marrecas. Self Service, a peso. Não era chique, mas também não era popular: a despesa iria além do previsto. Entramos e o funcionário encrencou com o garoto, não o queria ali. Sosseguei o funcionário e orientei o menino para que ficasse junto ao caixa, enquanto eu fazia as quentinhas. Ele ainda advertiu:
- Tio, muito arroz, feijão e macarrão.
Enchi as quentinhas, pesei, paguei e saímos. Já no Passeio, segurando a sua quentinha, o menino falou:
- Tio, a minha eu não vou dividir com ninguém. A minha é só minha, tá?
Entreguei as quentinhas às meninas, que agradeceram – também os rapazes o fizeram -, enquanto o menino sentava-se na grama para o seu almoço. Afastei-me, deixando-os à vontade na partilha.
Não lembro a que filme assisti no Palácio. Mas até hoje não esqueço daquelas crianças do Passeio Público, especialmente do menino. Não esqueço de sua esperteza recusando os doces e pedindo comida – com muito arroz, feijão e macarrão. Esperteza que lhe ensinou a vida, desde cedo.
Não esqueço aquele menino que há muito deixara de ser menino.
Outubro de 2009
2 comentários:
Caro Ventura. Eu já sabia que você tem um bom coração. Vivi uma situação com um senhor que me pediu um prato de comida em um restaurante. Fiquei desconfiado e observei de longe se ele ia pedir realmente a comida. Ele pediu e comeu como um padre(seria pastor?). Fiquei com vergonha da minha desconfiança. vava
Achei interessante que o filme assistido nem seja lembrado, mas que a cena do menino e da quentinha seja perpetuada na memória e no texto. A vida trata de selecionar o que importa!
Adorei saber que vc está envolvido com as ilustrações de um livro infantil... que coisa mais que booooaaaa! Eu amo literatura infantil (nunca deixei de amar) e já estou ansiosa por lê-lo!
Abraço!
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