1 de nov. de 2009

Arroz, feijão, macarrão



Sentado num banco do Passeio Público, eu acabava de ler o que de interessante achara no jornal, sem mais o que fazer além de aproveitar a sombra do arvoredo e olhar o entorno. Fazia hora para assistir à matinê do cine Palácio.
Um mendigo aproximou-se e pediu um cigarro. Dei. Mas considerei de bom alvitre afastar-me dali, movimentar-me, evitando assédios semelhantes ou piores. A matinê ainda demorava.
Transitei pelas ruelas tortuosas do jardim, observando as árvores, as plantas, o lago e as esculturas, e lamentando o péssimo estado de conservação de tudo aquilo. Parei na Fonte dos Amores, obra do Mestre Valentim. A conservação não era melhor (isto foi antes da restauração de 2004).
Perto da fonte, duas meninas pré-adolescentes, magras e andrajosas; uma de pé, a outra agachada lavando trapos nas águas verdes do lago. Mais velhos, mas pouco mais que meninos, dois rapazes conversavam e fumavam. Outro menino, o menor do grupo, mas talvez de idade superior à que permitiria supor o seu corpo miúdo, destacou-se dos parceiros de infortúnio e caminhou para mim.
Tive vontade de sai dali, de fugir ao assédio cujo resultado eu adivinhava.
- Tio, me paga uma quentinha?
- Filho, você não quer um saco de pipoca, uns doces? – tergiversei, na tentativa mesquinha de aliviar o bolso. Que criança não gosta de guloseimas?
- Não, tio. Eu quero comida, uma quentinha bem cheia.
- Está bem, eu pago a quentinha. Vamos.
- Tio, dá pra você pagar uma quentinha pra minha irmã?
Olhei as duas meninas. A que lavava trapos parou de lavar, ergueu a cabeça e olhou-me longamente sem dizer palavra. Nem precisava, seus olhos diziam tudo.
- OK, mais uma quentinha – conformei-me. Vamos buscá-las.
Alguns passos além e gritaram-me pelas costas:
- Tio, trás uma quentinha pra mim também?
Era a outra menina. Concordei - quem paga duas, paga três -, mas que ficassem ali, eu traria as quentinhas. Apressei-me, temendo que os outros pedissem também; nesse caso o meu orçamento ficaria seriamente comprometido, talvez nem desse para ver o filme. Disse-me o menino:
- Tio, a minha eu quero com bastante arroz, feijão e macarrão, tá?
Perguntei-lhe se sabia onde forneciam quentinhas; sabia, claro, e levou-me a um restaurante na Rua das Marrecas. Self Service, a peso. Não era chique, mas também não era popular: a despesa iria além do previsto. Entramos e o funcionário encrencou com o garoto, não o queria ali. Sosseguei o funcionário e orientei o menino para que ficasse junto ao caixa, enquanto eu fazia as quentinhas. Ele ainda advertiu:
- Tio, muito arroz, feijão e macarrão.
Enchi as quentinhas, pesei, paguei e saímos. Já no Passeio, segurando a sua quentinha, o menino falou:
- Tio, a minha eu não vou dividir com ninguém. A minha é só minha, tá?
- Claro. Se houver divisão é com estas duas, das meninas.
Entreguei as quentinhas às meninas, que agradeceram – também os rapazes o fizeram -, enquanto o menino sentava-se na grama para o seu almoço. Afastei-me, deixando-os à vontade na partilha.
Não lembro a que filme assisti no Palácio. Mas até hoje não esqueço daquelas crianças do Passeio Público, especialmente do menino. Não esqueço de sua esperteza recusando os doces e pedindo comida – com muito arroz, feijão e macarrão. Esperteza que lhe ensinou a vida, desde cedo.
Não esqueço aquele menino que há muito deixara de ser menino.

Outubro de 2009

2 comentários:

Pavel S. Oliveira disse...

Caro Ventura. Eu já sabia que você tem um bom coração. Vivi uma situação com um senhor que me pediu um prato de comida em um restaurante. Fiquei desconfiado e observei de longe se ele ia pedir realmente a comida. Ele pediu e comeu como um padre(seria pastor?). Fiquei com vergonha da minha desconfiança. vava

Jussara Neves Rezende disse...

Achei interessante que o filme assistido nem seja lembrado, mas que a cena do menino e da quentinha seja perpetuada na memória e no texto. A vida trata de selecionar o que importa!
Adorei saber que vc está envolvido com as ilustrações de um livro infantil... que coisa mais que booooaaaa! Eu amo literatura infantil (nunca deixei de amar) e já estou ansiosa por lê-lo!
Abraço!

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