Havia no quintal dos fundos da casa um pé de abacate que, apesar de jovem, projetava uma nesga de sombra suficiente para mitigar o calor a quem nela se refugiasse. Era aí que eu costumava ler o jornal de domingo. Lia recostado em confortável poltrona, enquanto uma brisa suave, vez por outra, vinha farfalhar nas folhas do jornal e nas do abacateiro, aumentando o meu refrigério e trazendo aromas do almoço em preparo. Só as notícias do jornal incomodavam.
Mas a concentração na leitura se desfez quando um barulhinho de mastigação, persistente e guloso, fez-se ouvir acima de mim. Examinei a copa do abacateiro: uma lagarta verde devorava uma folha, depois outra e outra... Como são ligeiras pra comer!
Voltei ao jornal sob o ritmo contínuo e tedioso das mandíbulas da lagarta, porém concentrar-me na leitura já não podia: aquele ruído penetrava-me os ouvidos e me dispersava o pensamento.
Até que o ruído cessou: a lagarta estava no chão.
O que teria acontecido? Que evento ou circunstância interrompera a comilança da lagarta? Um ataque ineficaz de um predador? Uma lufada mais forte da brisa, sacudindo o restaurante da bichinha? Ou a lagarta simplesmente escorregou da folha, com todos aqueles pezinhos? Nesse caso foi uma escorregadela múltipla! Puro azar.
Mas que importa a causa, se a lagarta estava no chão?
Desviei do jornal e fiquei observando o infortúnio da lagarta, em suas tentativas de retornar ao abacateiro.
Havia um pedaço de muro dividindo o quintal, mas aberto onde eu me encontrava; deste modo acessava-se a outra parte do terreno. O abacateiro crescia ali, a cerca de meio metro e mais ou menos parelho ao pilar de concreto que rematava o término do muro. A lagarta caiu perto desse pilar.
Mas não se achou perdida: o instinto lhe dizia que as deliciosas folhinhas estavam acima; era necessário subir, portanto. Rodou a esmo até dar de cara com o pilar de concreto. Se era para subir, subiu. Terminada a vertical, emendou pela horizontal do muro – talvez fosse um galho do abacateiro. Não achou as folhinhas e ao chegar à parte do muro batida pelo sol, retornou. Desceu ao chão. Nova procura pela verticalidade redentora e de novo o pilar à sua frente. Subir, subir, lhe dizia o instinto. Subia, andava pela horizontal do muro, voltava.
Evidentemente que suas vistas não eram grande coisa, o abacateiro estava a meio metro, mas a pobre não o enxergava, só topando com o pilar de concreto. Nem a textura, nem o aroma, nem a temperatura da superfície de concreto combinavam com o que sabia de árvores, galhos e folhas, mas o pilar era a única verticalidade que encontrava, e sabia que tinha de subir...
De visão curta e prisioneira do instinto, a lagarta ficou no sobe-e-desce, no vai-e-volta, indefinidamente, incapaz de variar em suas tentativas.
Adeus lagarta, adeus crisálida, adeus borboleta!
Assim é a vida: nem todas as lagartas viram borboletas, talvez só a minoria o consiga. E a maioria de nós não somos também lagartas, com um sonho lindo de virar borboletas?
Há de haver muito esforço, muito trabalho (e como se esforçam as lagartas!); há de haver talento e oportunidade, e muita sorte, claro. Não há fada madrinha nem varinha de condão para fazer virar.
Virar borboleta é apenas uma possibilidade imponderável. Vivamos pois nossa vidinha de lagartas, honestamente comendo folhas e desejando a beleza das borboletas.
Mas, se cairmos da folha?
Se cairmos da folha temos vantagem sobre as lagartas: temos liberdade e discernimento para variar os rumos, escolher caminhos, perseverar...
Outubro de 2009
2 comentários:
Um belo resgate de sua obra amigo, com esta bela mensagem da perseverança.
Sejamos lagartas nesta teimosia, de alcançar nossos sonhos.
Um abração
A metamorfose não foi destinada aos fracos. É necessário rastejar muito, antes de poder voar!
Abraços, Vô Tônico.
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