Naqueles poucos dias que estive em Cunha, passei-os na casa de meu amigo Vavá, a quem visitava após mais de vinte anos sem contato. Levei um de meus filhos, Daniel, e ficamos confortavelmente instalados em suíte construída abaixo do pavimento principal da casa, no "porão", como dizia o meu amigo. Em frente havia girassóis e uma piscina, da qual não pude usufruir em virtude do clima de inverno. Bastaram-me os girassóis.
Levantava cedo e, com todos ainda recolhidos e ausência de café à mesa, saía andando pelos arredores, exercitando os músculos e aproveitando o ar fresco da manhã.
No dia em que retornaríamos ao Rio de Janeiro, um domingo, não foi diferente. Subi pela rua até onde terminava o asfalto e parei no cruzamento com a rua de barro, sem vontade de prosseguir: fazia frio, garoava, e o risco de escorregar no barro era grande, já que o relevo dali em diante apresentava aclives e declives acentuados. Um velhinho passou por mim expelindo vapores ao falar:
- Bons dias!
- Bom dia! – respondi.
As pessoas do interior, mormente as mais velhas, cumprimentam até quem nunca viram. Já nas cidades grandes...
Mas eu fiquei ali, encolhido no meu casaco de veludo, último remanescente de um passado em que frequentei a cidade e outras do Vale do Paraíba. Acendi um cigarro e olhei ao redor. Em frente, o caminho de barro continuava até subir um pequeno morro, entre casas modestíssimas e esparsas. Nada que se comparasse às favelas do Rio, porém ali moravam, com certeza, pessoas de precária condição econômica. À esquerda, um pequeno lago, assoreado e sujo, produto menos de nascente potável que de águas pluviais e talvez esgoto. Uma paisagem nada admirável.
Apaisagem nada admirável 5 anos depois: as ruas estão asfaltadas e o lago desassoreado e limpo. Ao fundo, o casario menos esparso e de melhor aspecto.
Olhei mais uma vez o sopé daquele morro. Uma figura, de guarda-chuva, caminhava em minha direção. Parecia uma menina. E muito bem trajada, o que me pareceu impróprio, vinda daquele lugar tão singelo. Caminhava com determinação e os seus sapatos, pisando o barro batido – úmido, mas firme – soavam nos meus ouvidos. Em dado momento, a menina (agora já era perceptível) diminuiu o passo, perdeu a determinação, parecendo-me indecisa ou receosa. Pensei: "já reparou em mim, reconheceu-me estranho ao lugar e intimidou-se com minha presença em seu caminho, já que sou a única pessoa na rua, além dela mesma". Resolvi afastar-me então, deixando o caminho à menina. Entrei na casa de meu amigo e postei-me na varanda, olhando a rua, curioso com aquela garota que descera do morro.
Os sapatos da menina agora soavam mais forte. Ela parou a conversar rapidamente com a vizinha e prosseguiu com o seu toc toc no asfalto. Passou.
Não tinha mais de onze, doze anos. O vestido preto, de tecido fino e bom caimento, um pouco acima dos joelhos, combinava com o guarda-chuva e os sapatos também pretos. Brancas, uma faixa prendendo os cabelos fartos, ligeiramente crespos e aloirados, e as meias de renda, compridas. Passos firmes e atitude de modelo desfilando moda na passarela. E ciente de sua elegância.
Do conjunto harmonioso destacavam-se os sapatos, com fivela e saltinho, estalando de novos e brilhando! Destacavam-se menos pelo que eram, mas pelo que diziam. Sim, os sapatos falavam, não com o asfalto, mas às pessoas: anunciavam a passagem da menina. Pareciam dizer: "olhem como está linda e elegante, olhem!".
Ao passar, a menina do guarda-chuva olhou discretamente para mim, e se foi
Seus sapatos falaram-me dela e de muitas coisas mais, de outros sapatos já esquecidos na minha infância longínqua...
Naquele tempo, eu queria porque queria sapatos de homem, não sandálias de menino. Já usava calças compridas, mas faltavam os sapatos. Mamãe comprou-me um par, a serem usados na minha 1ª comunhão. Sapatos de verniz, reluzentes! Não eram de cromo ou qualquer outro material nobre, mas tinham o acabamento "vitrificado", simulando verniz. Quando envelheceram, o "verniz" desmanchou-se em craquelê, pior que rugas em rosto de ancião, mas enquanto novos eram de causar inveja. Lindos!
Eu não podia esperar a 1ª comunhão. Sendo domingo, pedi à mamãe que me deixasse ir à missa em Ribeira de Fráguas, calçando os sapatos novos. Iria com a minha irmã Carmem. Autorizado, comecei a produzir-me: banho de bacia (resumia-se a lavar o rosto, orelhas e pescoço, braços e pernas); depois vestir calça, camisa e calçar meias e sapatos... Ah, os sapatos! Que complicado, eu mal sabia fazer o laço nos cadarços! Em vista de tudo isso, demorei muito e minha irmã não quis esperar-me, pois havia combinado ir com as amigas. Pois eu iria sozinho à missa, ainda que chegasse atrasado! Sozinho não: eu e os meus sapatos!
Chegamos já nos ritos finais da missa, mas valeu bem a pena: durante o longo trajeto e ali, no adro da igreja, tive a ilusão de que todos admiravam os meus sapatos de verniz!
Doce ilusão!...
Mas o que eu não sabia é que sapatos novos costumam magoar os pés e os meus ficaram magoadinhos: voltei para casa mancando!
Embora os sapatos da menina do guarda-chuva não me tenham dito aonde iam, eu não tinha mais dúvidas: dirigiam-se a um culto dominical. Mas pouco importa aonde ia a menina ou fazer o quê. Sua intenção, verdadeiramente, foi mostrar a toda gente os seus sapatos novos, seu vestido, sua elegância e a sua beleza pré-adolescente!
Aromas do café da manhã inundaram minhas narinas. Entrei.
Transcrito do livro "Cacos da Memória"
Autor: João Antonio Rodrigues Ventura
antoniorodrigues25@superig.com.br
1 comentários:
Esta história, passada em parte no Brasil, foi o ponto de partida para o livro "Cacos da Memória" e, juntamente com a "Nota do Autor" são, por assim dizer, o prefácio da obra.
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