1 de jun. de 2010

Pesquisa escolar


A tia mandou um bilhete no livro de geografia da menina: "O povo brasileiro formou-se a partir da mistura de três grupos humanos representados pelo branco, pelo negro e pelo índio. (...) fazer cartaz sobre as características e herança cultural que cada grupo deixou para o povo brasileiro.".
A mãe pediu o concurso do avô para a feitura do cartaz; o avô desceu da estante volumes da enciclopédia BARSA (o computador estava ocupado), escolheu gravuras pertinentes e reproduziu-as na impressora; comprou cartolina, muniu-se de tesoura, cola, régua, lápis e canetas e pôs mãos à obra; esquadrejou, margeou, recortou as figuras e colou-as, deixando espaço para o texto; legendou; desenhou um mapa mostrando a origem geográfica dos grupos étnicos envolvidos – tudo encimado por título grandioso: FORMAÇÃO CULTURAL DO POVO BRASILEIRO.
Só então caiu em si, alertado pela mãe da menina: é que a estudante em questão ainda vai completar seis anos e está nos primeiros meses da alfabetização! Não vai parecer que o cartaz teve a sua participação. O velho deixara-se levar por sua boa vontade, pelo senso de ordem e por suas habilidades para o desenho.
Claro! Que grande idiota sou eu! – pensou o velho, admirando sua obra, que apesar de algumas imperfeições resultantes de sua vista cansada e ausência de iluminação adequada, ainda assim apresentava ótimo aspecto gráfico, impossível a uma criança da alfabetização, mais crível para estudantes dos últimos anos do fundamental.
E agora? Trabalho perdido?
Então o avô redigiu o texto, mínimo e simples, escolhendo as palavras, e fez que a neta o copiasse a lápis olhando o seu modelo de letras manuscritas e redondinhas - com toda paciência. Em seguida recortou e colou no cartaz, nos lugares previamente reservados para tal. E encerrou a tarefa.
Já perceberam os meus quatro leitores (talvez mais, porém refiro-me aos quatro cadastrados no blog) que a personagem idiota da história acima é nada mais nada menos que este vosso escrevinhador. Pois é: ninguém se levanta sem cair...
Mas cá entre nós: tem cabimento pedir uma pesquisa sobre esse assunto ou quaisquer outros a uma criança de seis anos que nem sequer se alfabetizou? Tá na cara que a pesquisa será feita pelo irmão mais velho, mãe, pai, avô... A meu ver, a única virtude dessas "pesquisas" é forçar o envolvimento dos pais com as atividades escolares do filho. Mas se o adulto envolvido agir como o avô da historinha acima...
É certo, porém, que a criança dessa idade gosta muito de pegar em tesoura e recortar papel ou figuras, lambuzar de cola e colar, fazer coisas, construir, manipular argila e outros materiais, desenhar; e nisso está realmente pesquisando, a seu modo e espontaneamente. Quanto a outras pesquisas...
E vamos combinar: pra quê uma criança na alfabetização precisa saber noções de história e geografia e de formações culturais? E andar com a sua mochilinha cheia de livros? Até dicionário! Nessa fase o mais importante para ela é a lancheirinha, e o único livro que deveria ter era a cartilha de alfabetização ou algo parecido com isso.
O que uma criança na alfabetização precisa é aprender a ler e escrever e contar. Simples assim – como antigamente! E que o faça o melhor possível, para não virar analfabeto funcional como é comum hoje em dia. Todo o resto virá a seu tempo, e tanto melhor quanto melhor a criança tenha aprendido a ler, escrever e contar.
Estas críticas, no entanto, não as faço às tias professorinhas (o diminutivo é afetivo); elas são grandes em sua dedicação e paciência com as crianças – talvez superadas tão somente pelas próprias mães. E sem o reconhecimento que lhes é devido, como de resto os demais professores.
Mas as professorinhas obedecem a diretrizes e programas vindos de cima e seguem, ou tentam seguir, os livros adotados pelo colégio; o colégio pretende demonstrar aos pais que ministra um ensino de alta qualidade e faz o seu marketing entupindo as criancinhas de conteúdos desnecessários à sua faixa etária; e os autores e editores da indústria de livros didáticos fecham o círculo de pressões; e dentro desse círculo ficam os pais e as crianças... e os avôs idiotas!
Portanto, senhores pedagogos, deixem de firulas pedagógicas modernosas - que apesar delas o ensino só tem piorado -; deixem de geografias e histórias, a menos que sejam da carochinha, e ensinem leitura e escrita aos pequenos. Tanto melhor quanto possível.
E respeitem a idade da criança, para que não venha ela, prematuramente, aborrecer-se com a escola.

Maio de 2010


6 comentários:

Gledson Vinícius disse...

Imaginação e criatividade... Essas são as matérias que devem ser ministradas em horário integral na educação nacional!

...saudades do amigo...

Paz e utopia

Joao Antonio Ventura disse...

Não sou tão utópico assim, fico no feijão-com-arroz. Mas a utopia é sempre boa, pois aponta para a frente. Apareça para matar a saudade... Abraços.

Teresa disse...

É! Teria muita coisa a comentar sobre o texto...
Sou pedagoga, bem sabe, e não concordo que não tenhamos avançado nas teorias educacionais, mas elas são traduzidas muitas vezes inadequadamente, tornando-se firulas que nada acrescentam realmente.
Entendo que o trabalho solicitado foi bastante inadequado, tanto na temática, quanto na forma. Cartaz?! Por que a professora não solicitou às crianças somente as gravuras e montou o cartaz ou mural durante a aula, com a participação delas, para que fossem percebendo a necessidade de boa visualização da mensagem? Refiro-me ao título com letras 'grandiosas', às legendas explicativas, às fotos em bom tamanho e bem distribuídas, ocupando o espaço disponível... Isso tudo seria matéria para uma turma de 1º ano se tivesse sido analisado coletivamente em sala de aula. Afinal, vivemos num mundo letrado, cheio de comunicações visuais e levá-las a interpretar essas mensagens é sempre um bom caminho. Mas se a criança nunca parou para pereber essas características...
Concordo com suas críticas às demandas do mercado (editoras), que ainda é muito grande. O MEC tem tentado exigir maior qualidade nas publicações, mas ainda há muito a se trilhar... Também há a necessidade de melhor qualificar os profissionais da educação, para que não fiquem a mercê de editoras, donos de escolas e de firulas pedagógicas... Por conta dessa má preparação, é que ainda vemos muita gente usando a expressão 'professorinha' (agora a crítica é pra você! rsrsrsrsrs). Não gosto de ser chamada de professorinha, nem de tia. Tente evitar, tio, essas expressões em seus textos. Sei que as usou com conotação afetuosa, mas, no meu entender, elas acabam desqualificando a profissão. É bom que não reforcemos o uso desses vocativos em nosso cotidiano... É a minha opinião...
Não seja tão duro consigo mesmo. Fez seu papel de avô...
Mas o que eu queria falar mesmo é pra você visitar o meu blog também: www.emiliaabriuacanastra.blogspot.com
Lá tem fotos da Festa Literária de São Cristóvão, no Colégio Pedro II... Dessa vez, não deu para chamá-lo, mas agora que sabemos que esse tipo de festa realmente atrai público, faremos a segunda no ano que vem e, então, você poderá participar duplamente: como autor de 'Cacos da Memória' e como Monteiro Lobato... Combinado?

Joao Antonio Ventura disse...

Bravo, minha linda! Já estava ficando meio frustrado porque só o meu amigo Gledson havia comentado a crônica. Gostaria que mais pessoas o fizessem, mesmo que fosse pixando(não é o seu caso, você não está pixando). Gostei muito dos comentários. Quando uso "tia" e outras expressões populares, o faço por ser a crônica um gênero leve e informal, coloquial até, e cuja temática são as miudezas do dia-a-dia; daí aceitar bem os termos populares, gírias e até lugares-comuns: é mais uma questão de estilo ou gênero literário. Mas entendo que você não goste. E quando digo "professorinha", referindo-me às professoras primárias, realmente o faço com grande carinho e admiração. Mesmo sem grande preparo, elas são as grandes heroínas da nossa sociedade, como os professores em geral. Isso, para mim, tem raízes profundas na minha pré-adolescência (veja a crônica "O nome da praça"). Os seus comentários ne incentivam a cronicar, eventualmente, outros assuntos sobre o tema. Obrigado. Abraços, professorona.

Teresa disse...

Agora, gostei: professorona!
Mas, já entrou no meu blog? Vou ficar esperando!

Joao Antonio Ventura disse...

Já entrei e vou acompanhar. Aguarde. Abraços.

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