Eram duas mulheres: uma de idade avançada, a outra novinha. Apresentaram-se como representantes de empresa conhecidíssima na praça e desejavam fazer pesquisa de mercado.
- Tem alguma coisa contra pesquisas? – perguntou-me a moça, com airoso sorriso.
Não tinha.
- Podemos entrar? Assim falamos mais à vontade, e não vai demorar, é ligeirinho.
Eu estava sozinho na manhã daquele sábado, sem nada a fazer senão ler o jornal, hábito que me acompanhava desde há muito. Alguns minutos perdidos com a pesquisa não me fariam falta. Considerei ainda não haver perigo algum, eram mulheres aparentemente inofensivas, e uma delas idosa. Além do mais, não tinha em meu modesto apartamento nada que chamasse a atenção ou despertasse a cobiça alheia, só trecos comuns e baratos, nada que qualquer vizinho não tivesse igual ou melhor. E aqueles eram outros tempos, de mais sossego e menos desconfiança. Mas que não tentassem vender-me qualquer coisa, contra isso estava alerta e prevenido. Convidei-as, pois, a entrar, e indiquei-lhes que sentassem.
- O Senhor já conhece o nosso produto? – indagou a senhora idosa.
Conhecia. E nem podia deixar de conhecer, já que o dito invadia os nossos lares pela tela da televisão, patrocinando entretenimento e prometendo mil vantagens, fazendo sorteios e distribuindo prêmios, enfim, trazendo a felicidade aos tele-espectadores. Tratava-se de um carnê de prestações mensais, cujo valor total, ao final, era trocado por mercadoria nas lojas da empresa emissora, geralmente eletrodomésticos e outras utilidades do lar. Compras a prazo ao contrário - com pagamento antecipado! Minha mãe tinha dois ou três deles e nem de longe eu pensava em comprar mais, se a pesquisa das senhoras enveredasse para esse fim, como já suspeitava. Se confirmado, usaria esses carnês como justificativa para desvencilhar-me das pesquisadoras, já então vendedoras.
A senhora idosa iniciou a venda do seu peixe, enquanto a moça apenas ouvia, mas de olhar atento e simpático.
O tal Carnê da Felicidade era muito popular e vendia bem – dizia-me a senhora – mas ocorria que, em alguns bairros, sem razão aparente, as vendas andavam mal. No intuito de transformar esse malogro comercial localizado em sucesso de vendas, a empresa titular do produto teria elaborado um plano de vendas, uma promoção especial para os tais bairros, e só para esses. E por isso estavam ali as pesquisadoras, em Irajá, um dos bairros visados, dando início ao plano.
Temi que o discurso da senhora descambasse pura e simplesmente para a venda de carnês, e questionei:
- E a pesquisa?
É o que faziam naquele momento. Sondavam possíveis clientes com perfil adequado que pudessem participar da promoção da empresa. O plano consistia em premiar alguns poucos clientes nesses bairros e fazer publicidade intensiva do sorteio, aumentando as vendas, portanto. Qualquer pessoa que visse premiado alguém do seu bairro, talvez o seu vizinho, haveria de querer comprar também. Era simples.
- O Senhor já viu os programas na televisão, os sorteios...
- Sim...
- Gostaria de participar?
- E como seria isso? – indaguei, curioso.
- Veja bem, como o objetivo da empresa é aumentar as vendas...
Claro, eu teria de comprar alguns carnês. Mas – assegurou a mulher – os meus carnês seriam cartas marcadas no sorteio. Prêmio garantido. Fazia parte do plano. Dez mil cruzeiros novos! Nada mau, convenhamos. Se não chegava a ser uma quantia exorbitante, não era também uma ninharia: dava para comprar um Fusca zerinho! E tudo ficaria "só entre nós", no mais absoluto sigilo.
Evidentemente era uma desonestidade – pensei –, mas naquele momento julguei não ser de todo inverossímil que a empresa admitisse fraudar um sorteio, privilegiando uns poucos clientes em detrimento de milhares de outros. Tudo pela promoção de vendas! Até porque tais produtos, sendo novidade, achavam-se livres de maior regulação estatal e carentes de fiscalização mais acurada. E, de mais a mais, a desonestidade partira de outrem, apenas transitava por mim, e a minha culpa, já de si tão pequena, como que ficava diluída por milhares de prestamistas enganados. Diferente de quando se trapaceia diretamente com uma única pessoa, cuja imagem concentra e relembra toda a imoralidade do ato e a culpa do trapaceiro. E, claro, tudo incógnito, eu não teria vergonha do meu vizinho, de ninguém.
- Mas tem um porém – continuou a senhora que vendia o peixe, a esta altura já palatável e também eu mais inclinado a degustá-lo.
- Sempre há um porém. Diga lá...
- É que esta promoção é só para clientes especiais, uma meia dúzia se tanto, nos bairros com problemas, não para clientes miúdos. O Senhor compreende, é uma operação melindrosa, se abrirmos a muitos periga entrar na boca do povo – Deus nos livre! Quantos carnês o Senhor acha que poderia adquirir?
A mulher dizia isto e me olhava nos olhos, observando minhas reações e tentando perceber-me o ânimo e adivinhar o meu poder de fogo. E ainda mexia com os meus brios: cliente miúdo, né? – pois vamos ver!
- Uns quatro ou cinco – arrisquei.
Era pouco. Só a partir de oito, informou a senhora, que a esta altura já não era pesquisadora, mas vendedora, o que me era também já indiferente. E havia mais um porém, este felizmente fácil de cumprir: a empresa exigia uma fotografia, após o sorteio, para ilustrar a propaganda na televisão e impressionar a vizinhança do cliente felizardo. Além de tudo eu ainda teria alguns segundos de fama na telinha, sem quaisquer transtornos adicionais, sem precisar viajar, sem participar do programa na televisão, apenas cedendo uma foto. Tudo muito conveniente.
- O Senhor... posso tratá-lo de você, posso? – interferiu a jovem, enquanto ajeitava a saia sobre as pernas cruzadas ao descuido e abrindo um discreto sorriso, a principio um tanto atrapalhado e depois franco e algo malicioso, a ponto de me deixar desconcertado.
- Você... assim fica melhor... você já imaginou o que poderia fazer com dez mil? Sim, porque um de seus carnês será premiado, na certa. E só o que você tem a fazer é um pequeno esforço agora... E regalar-se depois...
Regalar-se... O verbo não era comum na boca do povo e, talvez por isso mesmo, entrou-me pelos ouvidos e foi direto à imaginação, campo fértil a todo e qualquer devaneio, do mais simples e infantil, como o regalar-se com os quindins e queijadinhas da vitrine da padaria, aos mais complexos e secretos regalos de homem adulto. Regalar-me depois?... Ah, como gostaria! Não só com os dez mil...
- Dez. Dez carnês é o que posso – disse, cortando as fantasias que me invadiam a mente.
- Parabéns! O Senhor acaba de ganhar dez mil. Lindinha, minha filha, vá preenchendo os carnês, vá.
Fui ao quarto buscar a quantia referente à comissão das vendedoras, enquanto estas preparavam a burocracia final.
Os meus queridos leitores já perceberam que eu acabara de cair no conto do carnê premiado, uma variante do famoso conto do vigário. Não tive maiores prejuízos, a não ser o brio ferido, já que os carnês quitados foram trocados por mercadoria. Mas o fato me lembra outro, este bem mais antigo, na minha adolescência.
Fui ao Banco sacar um dinheirinho na Poupança de mamãe para me matricular num curso preparatório à Escola de Especialistas de Aeronáutica. Saído da agência, topei com um matuto muito atrapalhado, que me indagou de um endereço no bairro. Não lhe soube informar. Nisto chegou um senhor bem apessoado, trajando terno e chapéu-coco e com a Bíblia debaixo do braço. Interessou-se pelo caso do caipira. Este procurava um mascate que tempos atrás passara no seu arrabalde e lhe vendera um bilhete da loteria; tempos mais tarde retornou desejando comprar o bilhete que lhe vendera, fornecendo-lhe aquele endereço para que o procurasse, caso quisesse fechar o negócio. Perspicaz, o senhor da Bíblia percebeu o enredo por trás da história do matuto: "- Se o mascate quer o bilhete de volta, com certeza está premiado". E propondo-se a resolver a questão:
- Naquele botequim tem um prospecto da Loteria Federal, vamos lá conferir o bilhete.
O matuto não quis ir, rogou que fôssemos nós, tinha medo até de atravessar a rua. Eu já estava um tanto impaciente com o prolongar daquela história, ia meio constrangido, inquieto, e no trajeto até o botequim disparou-me um alarme na mente: se estiver premiado é golpe, só pode ser golpe! E não deu outra: o bilhete (adulterado, evidentemente) fora premiado! Primeiro prêmio! Uma grana assombrosa!
Fiquei aflito, confuso, o coração batendo forte, e o senhor da Bíblia iniciou a etapa seguinte de sua vigarice:
- O matuto é um palerma, nós podíamos...
Deixei-o a falar sozinho. O mais da conversa que não aconteceu o leitor pode bem imaginar... Passava um ônibus, peguei-o sem olhar pra onde ia, não era a minha condução, desci mais à frente e peguei outra. Livrei-me dos vigaristas!
Nestas duas histórias que acabo de contar, a mesma psicologia de usar a ambição e a desonestidade da própria vítima. Isso é que é malandragem! Há uma diferença, porém, a qual determinou finais diversos: naquele tempo da minha adolescência eu ainda era idealista... e possivelmente honesto.
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