17 de fev. de 2024

A mulher esperta e seu menino

           Às seis da manhã, como de costume, fui à padaria comprar pão. Na volta topei com uma mulher, jovem ainda, com bebê ao colo. Viera de Ricardo de Albuquerque, na baixada fluminense, em busca de atendimento médico para o menino, que não evacuava há dias. Na UPA de Marechal Hermes não havia pediatra, em vista do que pedia ajuda para retornar a Ricardo. Pensei em dizer-lhe: já foi na Clínica da Família, do outro lado da ferrovia? Só pensei. Abri a carteira, tinha apenas uma nota de 20 reais. E no fundo do bolso algumas moedas que não davam uma passagem de ônibus.

          Olhei então o menino. Não me pareceu doente: não apresentava sinais de dor ou choro, olhos muito vivos, rostinho de saúde, só faltava sorrir.

          Antes que pensasse em trocar o dinheiro na padaria, disse-me a mulher: 

          — Se me der os 20 reais, será muito abençoado.

          Dei.

          E afastei-me com a sensação de ter sido, mais uma vez, enganado. Mas serei abençoado, embora já me sinta abençoado pela vida que tive até aqui. Benção, porém, nunca é demais. Aleluia!

21 de nov. de 2023

A bruxa de Petrópolis

           Contam que surgiu do nada, próximo a uma fonte nas matas de Petrópolis, nos primeiros anos da década de 1950. Foi acolhida por família em modestíssima casa de pau-a-pique nas imediações da fonte, onde se abasteciam.

          Ouvindo o relato, pensei na minha mãe e nas histórias que ela contava, da Moura Torta e das princesas mouras encantadas, as quais costumavam aparecer nas fontes de águas cristalinas.

          Mas aquela estranha criatura, vinda do nada, não era moura nem princesa. Descalça, vestia-se de preto quase cinza, tão desbotado estava. Seus cabelos, fartos, compridos e já embranquecendo, avançavam para os lados, desgrenhados, como se nunca houvessem conhecido pente ou água e sabão. Essa cabeleira era, por assim dizer, sua marca, sua identidade. E do nada trouxera um dom especial e muito apreciado: o de predizer o futuro. Quando tal fato se espalhou, formaram-se filas de consulentes ansiosos por bisbilhotar o futuro com perguntas as mais triviais e outras nem tanto:

          — A minha vizinha fofoqueira vai parar de me apoquentar?

          — Ficarei curada do meu câncer de mama?

          A toda pergunta dava resposta. Uma mulher trintona lhe perguntou:

          — Terei filhos?

          — Terá seus filhos, mas antes troque de marido, ou então entre na fila de adoção.

          — Ora, onde já se viu?! Trocar de marido? Isto é coisa séria, não vim aqui para ouvir piadas.

          Alguma paga? Não. A muito custo a estranha que veio do nada aceitava um agrado, uma fruta, uma flor singela, uma bijuteria barata. De uma senhora recusou um bonito lenço de cabeça, de outra, um pente. Não precisava de lenço para cingir-lhe os cabelos nem pente para penteá-los. Estava satisfeita com o seu visual, principalmente o dos cabelos.

          E depois de muitas e muitas perguntas e respostas, as filas se extinguiram e novos consulentes já rareavam. Então a criatura que surgiu do nada, ao nada retornou. E nunca mais foi vista ou sequer dela se teve notícias.  

 


3 de nov. de 2023

Certa noite em Belô

        Professor de geometria. Competente e ambicioso. Não aquela ambição que motiva e impulsiona à riqueza, mas a que lhe desse melhor qualidade de vida, talvez até casar e constituir família. Ambição natural e saudável.

        Nesse sentido, tinha duas matrículas: uma na rede pública estadual, outra em rede particular. Nesta última progrediu rápido até chegar a supervisor de ensino. Agora está bom, pensava. Podia casar, alegrava-se.

        Em tratativas pertinentes ao cargo, precisou deslocar-se à sucursal de Belo Horizonte, cidade que não conhecia. Após desincumbir-se da missão que o levara, ao cair da tarde, passeou pelo entorno do hotel em que se hospedara.

        Corria um vento persistente e brincalhão, a mexer-lhe os cabelos, levemente frio. Pensou em sentar-se a um bar e beber algo quente. O bar estava lotado, pediu licença a um senhor solitário em mesa na calçada e iniciou conversa:

        — Sou do Rio de Janeiro, vim a trabalho. O senhor é ...

        —  Mineiro. O povo de Minas gosta muito do Rio. Quando eu era moço ia muito na praia de Cabo Frio. Conheço também Copacabana.

        — E o que me diz de B H, o que tem de bom por aqui?

        — Aqui tem muito trem bom, uai!

        — Por exemplo? 

        — Mulher bonita, bebida boa...

        — O que está bebendo?

        — Batida de coco com leite Moça.

        — Leite condensado?

        — Só um tiquinho, pra melhorar o sabor.

        O carioca chamou o garçom e pediu a batida de coco com leite condensado. Bebeu-a quase de um gole só, tão gostosa que era.

        — Deliciosa!

        — É...

        — Garçom, mais uma. E pelo mesmo caminho foi a segunda batida.

        — Magnífica!

        — É...

        E já na terceira dose:.

        — Divina! Desce redondo, redondinho.

        E o mineiro, olhando com algum espanto o carioca, mas com ligeiro sorriso no canto da boca:

        — É. Mas costuma subir quadrado, quadradinho.

        Então o professor começou a sentir zonza a cabeça e um suor frio a escorrer- lhe das frontes. Tentou levantar- se , as pernas tremeram. E quando conseguiu ficar de pé, cambaleou, endireitou-se e seguiu, aos trancos e barrancos, rumo ao hotel. Entrou no quarto e desabou na cama.

        Nessa noite não sonhou com belas mulheres e prazeres tais e quais. Nessa noite sonhou com a quadratura do círculo.*


* PS: problema geométrico proposto pelos antigos gregos e que consiste em construir um quadrado de área igual à de um círculo dado, usando apenas compasso e régua não graduada, recursos que os gregos possuíam, permanecendo insolúvel durante cerca de 25 séculos. Atualmente é resolvido por meio de cálculos algébricos. 



31 de out. de 2023

Ai de ti, Gaza

 

Dez mil crianças

         Três mil crianças perdidas

          No presente desvario

          Luzes ausentes no futuro

          Já no passado esquecidas