10 de fev. de 2010

Fantasias


A menina se esbaldou o dia inteiro, está cansada, mas briga com o sono. A televisão despeja imagens e palavrório, a que ninguém liga, nem ela nem o avô, sentado ao seu lado no sofá. O velho tenta ler o jornal que não pode ler durante o dia, sempre solicitado como coadjuvante nas brincadeiras da neta.
- Vô, qual história você quer que eu leia pra você? Escolhe uma – propôs a menina, com vários livretos nas mãos.
O avô espichou os olhos do jornal para os livretos, escolheu logo o primeiro, tanto fazia, queria era ler o jornal e além do mais já conhecia por demais aquela brincadeira. A menina se ajeitou no sofá, abriu o livreto e apontou com o fura-bolos o título da história. Começou a "ler": O Mar de Mariana*.
O velho continuou sua leitura, desligado da "leitura" da neta. A menina bronqueou:
- Presta atenção vô, estou lendo pra você!


Onda vai, onda vem. Mariana coloca o rosto na areia seca e vê uma concha muito diferente, muito linda e bela. Ela apanha o brinquedo e vai para casa e fica vendo até anoitecer... Primeiro sai da concha os borbulhantes, depois as águas por dentro e por fora, depois sai os bichos. Depois ela olha e vê o fundo do mar encantado. Aí ela abre a porta e vê os peixes e sai nadando. Aí vê o príncipe Neturno com o tritão na sua mão...
- É tritão, vô?
- Não, é tridente, aquele garfo grandão, com três dentes.
A menina ainda não é alfabetizada, não sabe ler, portanto. Mas sabe muito bem fingir, ou representar, como diz o avô, que já lhe vislumbra um futuro de atriz (ser avô é ser tiete dos netos!). Sua "leitura" consiste em folhear o livro e seguir as ilustrações, que lhe trazem à lembrança a historia já conhecida. E assim vai "lendo": truncando, omitindo ou acrescentando, ao sabor da memória e da fantasia.
...com o tridente na sua mão. O príncipe fala: - Mariana, eu quero falar com você. Ela se assusta e sai nadando, o Neturno vai com ela, com o tritão... com o tridente na mão. Mariana pula nas costas de um golfinho abanando o seu rabinho bem brilhoso. O príncipe diz: - Espere, Mariana. Ela vê uma luzinha bem pequena, aumentando, aumentando, e vê sua casa lá longe. Aí ela dorme um sono profundo. E o mar, chuá, chuá... E quando ela acorda vê um papel preso embaixo da janela: A concha é um lindo presente que a tia Iemanjá me deu. Por favor, devolva, jogue a concha no mar. Neturno...


E quando o avô comenta com alguém que a neta "lê de mentirinha", é logo contestado: - De mentirinha não, vô. Eu leio de verdade mesmo!...
O velho sorri da fantasia da pequena.
Mas o que é fantasia e o que é realidade na cabeça de uma criança de cinco anos? É tudo misturado, uma coisa só, a bem dizer. As coisas acontecem porque algo faz que aconteçam. Mas esse algo, a causa ou conjunto de causas, para a criança nada tem a ver com lógica, pode ser qualquer coisa: o vovô morreu porque Jesus quis transformá-lo em estrelinha no céu; o seu dente caiu porque a Fada dos Dentinhos quis levá-lo, mas deixou em troca umas moedinhas; causas podem ser a Cuca, a Velha do Saco, uma bruxa malvada ou qualquer outra fantasia.
E com os adultos não é muito diferente: vivemos fantasiando a realidade que não conhecemos (ou preferimos ignorar). Assim é desde as cavernas! Fantasiando nossos remotos ancestrais criaram deuses e demônios para explicar os mistérios da natureza. Assim também os Magos orientais, em busca da Fonte da Eterna Juventude e da Pedra Filosofal, e traçando mapas astrológicos, inventaram a ciência. E a arte, de onde vem? Assim é que grande parte de tudo que o homem criou, até hoje, foi um dia fantasia.
Ah! fantasia, como te quero real!...
Mas deixemos de lero-lero de narrador, que a menina quer acabar de ler a história para o seu avô sonolento.
...Onda vai, onda vem. Mariana joga a concha lá longe no meio do mar. Muito bem! O tridente está na areia com a foto do príncipe Neturno, que é muito lindo.
O avô está com o jornal arriado sobre os joelhos, cabeça encostada no espaldar do sofá, olhos parados no ventilador de teto.
- Gostou da história, vô?
- Ãh... gostei, você conta muito bem.
- Eu não conto história, vô, eu leio. Quer que eu leia outra?
-Está ficando tarde... é melhor dormir...
- Boa noite, vô.
- Boa noite.
Se essa menina continuar gostando de livros como parece gostar, há de ser grande – pensa o avô, enquanto afasta o jornal e desliga a televisão. E quando aprender a ler, então? Quando descobrir o mistério, a mágica que faz os livros contarem histórias; a grande mágica, a maior de todas, a que nos leva aos lugares mais distantes da Terra, às estrelas ou às profundezas do oceano, e nos permite montar num "golfinho abanando o seu rabinho bem brilhoso", – sem varinha de condão, abracadabra ou pó de pirlimpimpim.

*O mar de Mariana, texto e ilustrações de Rogério Borges, Coleção Imaginário, Editora Scipione.
Fevereiro de 2010