17 de jan. de 2016

Um turista em apuros

Fui ao Sul conhecer Curitiba. Levei a família. Pretendia dar uma esticada até Morretes e Antonina, no litoral paranaense, viajando no trem da ferrovia Paranaguá-Curitiba; e ainda visitar um amigo no balneário Camboriú, em Santa Catarina, e levar a Yasmin ao Beto Carrero. Hospedamo-nos num hotel próximo da rodoferroviária para facilitar a logística.
Visitar o amigo não foi possível, por motivos alheios à minha vontade, mas o resto do programa se concretizou.


No ônibus da linha turística

Curitiba é uma bela cidade, bastante funcional e limpa, deslocamentos facilitados e muito verde, com seus muitos bosques e parques, alguns deles implantados a partir de antigas pedreiras desativadas. Um bom lugar para se viver. E uma cidade onde ainda vale a pena ter carro particular.



No Bosque do Alemão

Mas então onde estão os apuros do turista?
Para aproveitar o recesso laboral do meu filho Daniel, viajamos antes do Natal. Pretendia fazer a consoada num restaurante qualquer da cidade, pensava num prato de bacalhau, uma garrafa de vinho e rabanadas. Embarcamos no BRT curitibano rumo ao setor histórico - lá deveria ser o melhor lugar para consoar. Tudo fechado! Grupos de festeiros na rua, um ou outro bar funcionando, mas restaurantes, nenhum! Pegamos um táxi e fomos para Santa Felicidade, um bairro de feição italiana e polo gastronômico da cidade. Nem a santa ajudou! Encontramos dois restaurantes funcionando mediante prévio agendamento e outro sem, mas com enorme fila!
Meu filho Rafael já havia me advertido que talvez fosse necessário agendar, mas não lhe dei ouvidos, besteira dele. Como uma cidade como Curitiba não terá um restaurante onde se possa ceiar, qualquer que seja o dia? Nunca tal me passara pela cabeça!


Na Ópera de Arame

Desistimos. Antes ainda passamos pelo shopping Estação (antiga estação ferroviária), também fechado. Voltamos ao hotel e ligamos para um delivery: a ceia de Natal foi pizza com guaraná!
No reveillon não foi diferente. Compramos na rodoviária esfihas e pão de queijo. Com mate gelado.
Na virada do ano, da sacada do quarto de hotel, eu olhava o perfil da cidade, agora faiscante, contra o negro horizonte: despedidas ao ano que se ia e saudações ao que chegava elevaram-se ao céu em formas reluzentes e coloridas, expressões ruidosas de corações esperançosos.
E o primeiro dia do novo ano amanheceu, igual a todos os outros dias, sob o céu cinzento de Curitiba.

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No centro da cidade

12 de dez. de 2015

Delicadezas de Jussara

Desde o formato às ilustrações de "Breve Lua", de Jussara Neves Rezende: delicadezas!
Mas não se engane o leitor com o substantivo que uso ou com o adjetivo "breve" utilizado por Jussara em seu título, para daí concluir tratar-se de poesia leve, superficial ou meramente gentil e romântica. Não! A poetisa mergulha fundo nas inquietações e ânsias da alma humana, talvez mais da feminina, como de resto já o fizera em seu primeiro livro, o "Minas de Mim".
Vejam este poema de 1987:

Dança
Loucas bailarinas
flutuam sobre as águas
ao som do riso da lua.

Assustados pirilampos
e florinhas curiosas
são adornos para a dança
enquanto gargalha a lua.

Flutuam coloridas
as bailarinas da lua.
Se há silêncio, mergulham.
O riso as põe a dançar.

O motivo dos versos não poderia ser mais trivial: os reflexos oscilantes da lua num espelho d'água. Certamente todos nós já vimos imagens da lunar dança, mas só os poetas sabem revelar a poesia que a envolve, ou inventar a que ela enseja (ai, que inveja dos poetas!). Jussara vai além, creio eu, nos dois últimos versos, remetendo o leitor aos silêncios e risos - não os da lua - mas a risos e silêncios da humana alma.

Quanto às ilustrações, deixo aqui um depoimento insuspeito: o de Yasmin. Disse-me ela:
- Sabe vô, desculpa, mas esses desenhos são melhores que os teus...
E tem razão a crítica de arte Yasmin Júlia. O traço simples e espontâneo, as delicadas texturas a grafite e as composições primorosas, como a da menina de guarda-chuva em direção à lua, são, para além dos poemas, outro ponto a destacar no "Breve Lua".
Evoé, Jussara!


Saiba mais sobre "Breve Lua" e Jussara Neves Rezende aqui e aqui 


1 de dez. de 2015

Conto de Natal

     
        É consoada de Natal. Sobre a mesa pernil assado, peru à Califórnia, bacalhau à portuguesa, arroz à grega, maionese, pastéis; e rabanadas, aletria, pudim, frutas tropicais, pêssegos, ameixas, figos secos, castanhas, nozes e avelãs. E há vinho do bom no refrigerador, e cervejas e refrigerantes.
          Harre! que muita fome se passa nos outros dias!
          Já não há pacotes de presentes sob a árvore de natal: os meninos cresceram.
          Daniel belisca uns pastéis e sai: haverá tempo de saborear aquelas iguarias, que afinal vão rolar da geladeira à mesa durante dias. É a primeira vez que sai à noite sozinho. Vai ao encontro de um amigo, a sobra da mesada no bolso; vai deitar conversa fora, tantas coisas a dizer do mundo que se desvenda, e beber uma cerveja no bar do Pita, esta sim de sabor especial – o adolescente sabor da transgressão.
          Num banco da praça do teatro senta-se à espera. Fiéis entram na igreja aos primeiros ritos da missa do galo, que já se não reza à meia-noite como dantes, mas bem mais cedo, às 21 horas, que é perigoso para um filho de Deus andar tarde da noite na rua.
          Alheio ao que se passa na igreja, Daniel repara noutra cena que seus olhos nunca haviam visto nem sua mente jovem conhecera ou sequer suspeitara: três homens, moradores de rua, preparam uma tosca ceia natalina junto à grade que protege a lateral do teatro.


"Velas e bolas natalinas" - original pintado com a boca por Mariam Paré
Pintores com a boca e os pés

          Em lata sobre três pedras a servir de trempe, um dos homens corta a canivete um molho de couves, do jeito que viera da banca do verdureiro, com talo e tudo. A um canto, no chão, um pedaço de mocotó, descourado, raspado mesmo, e esvaziado de seu conteúdo. Daniel não tem dificuldade em adivinhar o primeiro prato do cardápio: cozido de lascas de couro com tutano e couves. O outro prato, talvez o mais ansiosamente desejado, prepara-o um dos outros dois, enfiando num pedaço de vergalhão algumas asas de galinha. O que parece ser o “chef” daquela cozinha improvisada e rústica pega do companheiro o vergalhão, dá mais uma ajeitada nas asas e escora-o na lata, que já ferve e denuncia pelo odor a natureza do cozido. O terceiro homem, que desmancha um caixote para alimentar o fogo, pega a garrafa de Pitu e bebe um gole, passando-a ao que espetara as asas no vergalhão, que faz o mesmo. Ao “chef”, que vigia as asas de galinha a chamuscar ao fogo, resta apenas jogar fora a garrafa vazia.
          Afinal o amigo chega e Daniel levanta-se e vai com ele ao bar do Pita. Já não pensa na cerveja nem atenta ao que o amigo diz, seu pensamento ficou lá na lateral do teatro. Tão falador que é, vai quase calado, respondendo ao amigo por monossílabos; tem vontade de falar, mas as palavras que brotam de sua mente engasgam na garganta, confusas, contraditórias, caóticas. O amigo nota algo de errado:
          - Tudo bem, parceiro?
          - Tudo mal... tudo mal...
         Chegando ao bar, Daniel tira do bolso uns trocados, confere e vai ao balcão do estabelecimento, voltando com uma garrafa de cachaça na mão. E retoma o caminho de volta à praça do teatro. O amigo segue-o, sem questionar ou dizer palavra. Na lateral do teatro, aproxima-se do “chef”, estende a mão com a garrafa e saúda:
          - Feliz Natal!
          O homem recebe a garrafa com largo sorriso, abre-a com os dentes e sorve um primeiro gole:
          - Obrigado, sangue bom! Quer um gole, uma asinha de galinha?
       Daniel agradece e afasta-se, ainda acenando e desejando boas festas, com algum alívio no coração e a inocência perdida.
         



26 de set. de 2015


O buraco do sino

Andei por aí com um amigo de infância muito querido. Não lembro por onde andamos, o que fizemos, nem o que comemos, nem o que bebemos. Devo ter bebido demais. Só lembro da volta, daquele maldito ônibus chaqualhando, tarde da noite, cheio de boêmios e gente esquisita. Ou eu é que estava esquisito? Fora do ônibus, breu puro! Impossível reconhecer o ponto a descer. Por que ficamos até tão tarde na rua? Já não tenho idade para essas extravagâncias!
Meu amigo, porém, estava alerta e acenou-me para descer. Aos trancos e barrancos entre as gentes esquisitas, cheguei à porta e saltei. O ônibus partiu desabalado. Procurei por meu amigo entre as pessoas que ali estavam e não o achei. Pensei que descera na minha frente, mas não - foi-se com o maldito ônibus!
Agora estava eu ali, sozinho, num lugar desconhecido e entre gente desconhecida. Procurei situar-me. Perguntei que lugar era aquele, já me denunciando como forasteiro. Disseram-me: - Buraco do sino. Nunca ouvira falar de tal lugar. Mas o lugar não era mau, até um pouco bucólico: algumas casas esparsas, outras agrupadas, e muito verde; ruas sinuosas e estreitas, mas calçadas. Não era um buraco, mas uma encosta de morro. Uma favela? Talvez, mas muito diferente das que eu conhecia. Das que conhecia de vista, pois nunca antes subira numa favela.
De repente senti a mão da loirinha sarará que estava ao meu lado pressionar-me a calva, e algo pontudo  e duro espetar-me as costelas; um bafejamento quente segredou-me ao ouvido: - Perdeu, passa tudo. Querendo evitar qualquer movimento brusco ou desajeitado que pudesse assustá-los, disse à mocinha: – Posso pegar a carteira ou…? Ela disse: – O senhor mesmo pega. Nervoso, atrapalhei-me com a carteira e a mocinha tomou-a de mim e fez a limpa, largando-a no chão. Afastaram-se calmamente, a loirinha e os dois comparsas negões. Ela ainda me aconselhou: – Senhor, não ande assim tão tarde na rua. É perigoso.
Safada! E eu nem fiquei com raiva dela!
E as pessoas que estavam ali no ponto de ônibus parece que nem notaram o que aconteceu comigo!
Sem dinheiro (um mísero trocado que fosse, para a passagem do ônibus!), sem identidade, CIC, cartão de crédito; sem leira nem beira, assim eu fiquei no Buraco do sino!
Era urgente sair dali, pedir carona num ônibus, o motorista haveria de entender. Vinha um em sentido contrário ao meu rumo, não importava, era esse mesmo - urgia sair! Mas o coletivo bifurcou noutro rumo, enganando-me. Então enveredei por um beco, escadas aqui e ali, no intuito de cercar o ônibus na rua mais acima. Fui parar num terreiro entre barracos e mato, uma espécie de oficina mecânica de carros, mecânico mal-encarado, talvez nem oficina fosse, mas um desmanche. Voltei e desci as escadas, quando subiam, em fila, vários homens nada simpáticos e que portavam nas mãos instrumentos que não defini bem, nem queria definir. Esgueirei-me entre eles e sumi dali!
Tentei um táxi, não tinha dinheiro, mas importante era sair dali e chegar em casa, então daria um jeito de pagar ao taxista. Veio um: lotado. Veio outro, vazio, mas nem ligou pra mim. Filho da …!
Desanimado, encostei-me num canto ao lado de um comércio, uma birosca, onde homens bebiam e falavam animadamente. Cantoria no ar. Um canto solene e suave. Meninas vestidas de branco, em procissão, chegavam ao lugar onde eu estava. Pararam. A da frente voltou-se para mim e olhou-me longamente sem dizer palavra. Pareceu-me que esperava uma atitude minha. Entendi que estava no lugar errado, na hora errada, eu mesmo uma pessoa errada naquele contexto. Entendi que estava, talvez, profanando um lugar sagrado para aquelas meninas, que ali iam ofertar seus mimos e cantar seus cantos para algum santo que eu desconhecia.
Afastei-me. Atravessei a rua e desci por uma escadaria sinuosa (como eram sinuosos e incertos aqueles caminhos!), intermitente e intercalada por patamares de chão batido. Parei em frente a uma casa, mais para casebre, onde havia pessoas conversando. Um senhor, idoso como eu, deu-me um dedo de prosa. Não lembro o que conversamos, mas as pessoas me pareceram simpáticas e acolhedoras. E aquele lugarzinho, aconchegante.
Olhei para além: não vi mar nem horizonte. Mais perto e mais para baixo, outra encosta alevantada, esta de rocha pura, nua, negra e lúgubre. E imensos nichos escavados nela, lembrando portais góticos. Não vi imagens. Apenas nichos vazios de uma catedral insólita. No buraco do sino.

Sempre que adormeço de bruços, tenho pesadelos. Raismaparta!!!

O amigo de infância que me deixou só, era o Ismael, de Minas do Palhal – Portugal. A catedral insólita me pareceu (sem os nichos) a imensa rocha que há por trás da levada, na mesma aldeia, e por cuja várzea eu brinquei, enquanto as ovelhas pastavam (esta última associação não a fiz durante o sonho, mas enquanto escrevia esta crônica).

Que me dizem disto, caríssimos psicólogos e decifradores de sonhos?