13 de mar. de 2011

Queixa de uma criatura descontente


Senhor, tendo em vista fatos estarrecedores acontecidos nesta terra abençoada por Ti (dizem), e ainda pela circunstância de não teres um PROCON (não adianta reclamar ao bispo, ele dirá que escreves certo por linhas tortas), venho a Ti diretamente reclamar da Tua criação.
Venderam-me uma criação perfeita, mas vê, Senhor: uma menina de seis anos foi assassinada pela amante do pai por mesquinha motivação; um bebê recém-nascido foi jogado pela mãe num córrego pestilento; um jovem matou os pais a facadas porque eles insistiam que trabalhasse; um motorista arremeteu o seu carro contra um grupo de ciclistas alegando impaciência com a manifestação deles (vários mortos e muitos feridos); por vingança, a mãozinha de um bebê foi decepada pela mulher de um tio da criança; há tempos, outra menina foi jogada da janela do terceiro andar por ninguém menos que o próprio pai, depois de ter sido muito maltratada, e uma jovem bem-nascida tramou e executou, com ajuda do namorado, a morte dos pais, por cobiça na herança... Não dou detalhes ou nomes porque a minha memória é imperfeita, nem Tu precisas – és onisciente. E o pior, Senhor, é que fatos deste gênero têm sido cada vez mais comuns – a vida que Tu criaste já vale muito pouco!
Senhor, perdoa o meu tom magoado de criatura enganada, mas é evidente que a Tua criação é imperfeita – algo saiu errado no Teu plano! Aquela menina não podia ter morrido assim, nem aquela outra, nem tantas outras meninas e meninos cujas vidas lhes foram roubadas de maneiras as mais cruéis e por motivações as mais torpes!
Perdoa se estou sendo injusto ou blasfemo, mas chego a pensar que seria melhor se não existisses! Assim, seríamos filhos do cosmo – poeira das estrelas – tão maravilhosos e insignificantes como as formigas ou a relva do campo. Órfãos de um Pai onipotente, talvez fôssemos menos arrogantes e prepotentes, menos egoístas e irresponsáveis; talvez fôssemos mais solidários e melhores na humildade e na comunhão com toda a natureza – que criaste para Tua glória eterna.
Sei que o produto de Tua criação não pode ser trocado nem o custo ressarcido, já que foi gratuito, e que a cavalo dado não se olham os dentes. E sei que só pode ser devolvido quando Tu quiseres, mas considera, Senhor, que algo saiu errado no Teu plano...
...Ou fomos nós que estragamos tudo?

30 de jan. de 2011

Eu quero é vadiar


Estou aposentado, mas de uns tempos para cá venho sofrendo insinuações de que devo arranjar um "bico", uma ocupação que some alguns trocados ao orçamento doméstico, como fazem muitos de meus antigos companheiros de trabalho. Até já recebi insinuações mais diretas e objetivas, mas sempre declino. Mais recentemente, em face do meu desempenho na supervisão da reforma da minha casa e dos bons resultados obtidos, sei que há quem sonhe com os meus préstimos na supervisão de obras alheias. As insinuações são tais que até minha mulher já disse: - Vai trabalhar, homem, te ocupa, vai espairecer e traz um dinheirinho pra casa, que não faz mal a ninguém.
Porra! Eu já trabalhei muito, carago!
Eu só brinquei até os dez anos. Depois foi trabalho, trabalho, trabalho... Primeiro ajudando os meus pais, entregando sacos de carvão e galões de querosene, de bicicleta, nessas ruas do Valqueire e adjacências; depois na oficina de bicicletas; depois na padaria entregando pão nos pontos de venda e fritando sonhos no tacho; depois o serviço militar e depois, depois, depois... Nunca aprendi a empinar pipa e a jogar bolinha de gude, e por conseqüência meus filhos também não sabem...
Eu não quero mais fritar sonhos – quero persegui-los e brincar com eles, como as crianças fazem nas brincadeiras de pique!
Mas não tenho medo do trabalho, nunca tive e me orgulho disso. Continuo trabalhando, domesticamente: pequenos reparos, troca de lâmpadas, interruptores e tomadas, faxina pesada, isso é comigo mesmo. E, se necessário, lavo a louça e encosto a barriga no fogão... E já limpei cocô de bundinha de neném e troquei muita fralda (ah! que saudade daqueles tempos!). A divisão do trabalho doméstico, que entre muitos casais ainda é tema de discussão, já se pratica em minha casa há muito tempo. Naturalmente, sem crise, sem discussão da relação.
Quanto a trabalho formal, quero repetir aqui um verso de um poema de Oscar Niemayer, que ouvi de sua boca (em vídeo) e minha memória gravou, na exposição memorável de sua obra no Riocentro: Que se foda o trabalho!
O que eu quero agora é vadiar, brincar de escritor e artista plástico, poetar, contar histórias, causos e lorotas; perder tempo olhando as nuvens para descobrir que desenho formam ou que não formam desenho algum, mas anunciam chuva; olhar o sol ao entardecer e embeber-me nas cores do seu declínio no horizonte; olhar as pessoas que passam, sem outra intenção que não seja a de imaginar que enredo, que drama ou tragédia carregam, enquanto meus ouvidos tentam ouvir o que dizem, que histórias contam; e, claro, estar com os amigos num bar ou à sombra de uma amendoeira na praia, neste calor abrasador do Rio de Janeiro, deitando conversa fora e tomando uma geladinha, que ninguém é de ferro.
O mestre Oscar, contudo, continua trabalhando até hoje, com mais de cem anos de idade - não abstante o verso de seu poema acima mencionado.
Não estranhem, portanto, se algum dia me encontrarem trabalhando.

30 de janeiro de 2011

Uma voz na penumbra


Alguém me disse que sou um contador de histórias. Pois bem, já que é assim vou contar mais uma, esta captada da vida real.
Estava eu assistindo TV, após o almoço, quando um peão de obra, o Ricardo (estou reformando a minha casa), tendo já esvaziado sua marmita, bebia um copo d'água e olhava também o que passava na telinha. A reportagem era sobre uma ONG que promovia atividades sócio-culturais-educativas numa das favelas do Rio de Janeiro: oficinas de artes plásticas, dança, esportes, etc...
Disse então o Ricardo:
- É... e o meu filho não pode ter isso...
O Ricardo é representante daquele povo que sobrevive sem ajutórios quer governamentais, quer particulares. Sobrevive do seu trabalho, com dignidade. No meu tempo de moço esse povo era chamado de REMEDIADO – o que tem remédio ou solução para os problemas da sobrevivência. Esse povo não é problema, é a solução que se almeja para todos.
Contudo, esse povo é quase invisível, não tem luz sobre si, não tem foco nem voz. É a maioria silenciosa que só aparece nas estatísticas do TRE a cada dois anos. Eu gosto de chamá-lo de POVO DA PENUMBRA.
Mas esse povo também precisa de ajuda, – não de bolsa-família ou cheque-cidadão -, mas de escola pública de qualidade, atendimento decente à saúde, transportes eficientes, saneamento, programas de habitação popular e equipamentos de lazer e cultura.
Nada além do seu direito e do dever do Estado. E tenho dito.

19 de janeiro de 2011

OBS: Este texto foi publicado originalmente no fanzine Visão Suburbana, edição de janeiro de 2011.


20 de jan. de 2011

Nada além de cinco minutos


O homem falava sério, com ares de expert e atitude de quem ia revelar um grande segredo ou conhecimento relevante, restrito aos poucos que acumularam sabedoria ao longo da vida:
- Aprendi com meu pai e vou ensinar pra você. Preste atenção, não vou repetir. É o seguinte: não converse com uma mulher por mais de cinco minutos; nesse tempo você tem que conquistá-la ou derrubar na cama. Se não conseguir em cinco minutos, desista. Se continuar conversando, vira coleguinha. E coleguinha de mulher é viado!
Putaqueopariu! Preconceito machista maior não pode haver!
Alerto, porém, que não estou generalizando; não é a visão do subúrbio, mas a de um suburbano anônimo, em suas próprias palavras, entreouvidas à porta de um botequim.
Mas se o preconceito e o machismo podem chegar a tanto – e com a convicção de sabedoria -, não é de estranhar que as mulheres e os homossexuais sejam, frequentemente, vítimas de violência e discriminações variadas.

 
OBS: Esta crônica foi publicada originalmente no fanzine Visão Suburbana, edição de dezembro de 2010.