13 de mar. de 2013

Maria, Maria


- Ó Maria... anda mulher, se não nos atrasamos.
- Já vou, já vou...
Margarida esperou um bocadito, Maria saiu com o cesto à mão, fechou por dentro o ferrolho da portaria e desceram a estrada a conversar. Iam à feira de Albergaria-a-Velha, sede do concelho. Fizeram o sinal da cruz ao passarem por São Pedro em nicho na parede da casa dos Carriços e entraram na ponte sobre o Caima.
- Acreditas, Maria, que esta ponte foi mesmo construída pelos mouros?
- Sei lá... Se vós que sois de cá tendes dúvidas, que sei eu, que sou de outras bandas? 
- E dizem que já tiravam minérios...
- Pode ser... Essas minas abandonadas, tão antigas...
- E os tesouros, acreditas? Aqui mesmo, embaixo desta ponte, há uma grade de ouro encantada pelos mouros, dizem...
- Tesouros... Mouros... Nem sei bem quem foram esses... Mas não deviam ser grande coisa, sempre metidos em bruxedos, encantamentos, essas coisas... E tesouros são a minha casa que me abriga, minhas terras que me dão o sustento, meu gado, minha família, os filhos...
Maria estremeceu ao dizer a palavra "filhos" e por instantes perdeu-se em pensamentos de aflições íntimas pressentidas. Acordou-a a mulher do Rambóia, a cumprimentá-las da janela do sobrado:
- Passou bem, Maria? Passou bem, Margarida?
Responderam e seguiram. Havia uma pequena trilha entre a quinta do Rambóia e a casa da Grila, num barranco íngreme e pedregoso que dava na estrada do Carvalhal; em geral todos subiam por ali; Maria preferiu ir um pouco além e acessar a estrada com menos desconforto. Margarida prosseguiu na conversa.
- Não sabia que te davas bem com os Rambóia. O teu marido e ele não se dão...
- Isso são coisas lá do Agostinho e do irmão. Eu sou de Vila Nova, não tenho por que me meter nessas desavenças de família. E além do mais, não estando cá o Agostinho...
- Muito acertado – concordou Margarida.
As duas passavam em frente ao velho e imenso carvalho, que da beira da estrada vigiava a parte baixa da aldeia por sobre a quinta do Rambóia. Da estrada enegrecida pela sombra emanava um frescor que envolvia os pés das caminhantes e lhes subia entre as saias. Maria olhou o tronco da árvore: bem que lhe apetecia sentar-se recostada nele e descansar protegida por aquele imenso e generoso guarda-sol! 
- Não vais hoje à feira, Rosa? – perguntou Margarida à esposa do Grandela.
- Não. Tenho umas costuras a fazer. Vão com Deus.
Depois passaram a levada (1) da Central Elétrica e alcançaram a fábrica do Carvalhal. Um cheiro forte de carvão de pedra empestava o ar. Maria incomodava-se, urgia afastar-se dali... Seguiram em silêncio e um pouco mais além deixaram a estrada para enveredar por caminho entre as matas. O frescor do arvoredo e o ar puro afastaram de Maria o mal-estar. Passaram o casal (2) de moradia dos administradores e funcionários graduados da fábrica. Maria, que até ali só respondia, perguntou:
- E o Joaquim, já conseguiu arranjar-se na fábrica?
- Está por conseguir – respondeu Margarida num tom esperançoso. Mas não é fácil, há muita procura e a fábrica é uma só... Se tivéssemos por cá umas três ou quatro fábricas dessas, aí sim, estes lugares seriam uma festa só...
Festa. A festa da Senhora do Socorro, ali bem perto de onde passavam e cujo arraial se transformava anualmente no centro da fé e do divertimento daqueles povos ao redor. Maria pensou na santinha. Bem que precisaria de sua ajuda, e da Senhora do Bom Parto, e de todas as Senhoras. Estava pelos últimos dias, bem que precisaria de ajuda...
- E tu, quando vais parir? – indagou Margarida.
- Só Deus sabe a minha hora, mas sei que não tarda... Pode ser daqui a pouco...
- Cruz, credo, Maria! Nestes ermos, longe de casa?! Nem penses...
- Vamos... Vamos logo fazer o que de casa saímos a fazer...
Na feira, Maria nem comprara tudo que desejava; sentia dores na bacia e a sua hora por chegar. Voltou-se para a Margarida:
- Olhe, eu já comprei tudo, sinto-me cansada e é melhor que me vá. Fica com Deus...
Nem parou na pensão onde costumavam merendar uma tigela de caldo ou pão-trigo com queijo: não havia tempo a perder nem fome sentia – só dor. Ajeitou o cesto à cabeça e enlaçou as mãos por baixo da barriga como a querer sustentá-la ou retardar sua função. Esticou o passo. Rezou em silêncio. E já nos termos de Albergaria o líquido viscoso e quente desceu-lhe pernas abaixo, ensopando as alpercatas! O suor tomou-lhe as frontes e o corpo todo afogueou-se! Mas talvez ainda houvesse tempo: apertou mais o passo e apegou-se às suas santinhas.
- Ai, minha mãe, valei-me nesta hora! Vós, que estais aqui tão pertinho, socorrei-me! Ave, Maria, cheia de graça, o senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre...
A reza já não era meramente pensada ou murmurada, mas saía de sua boca quase aos gritos! Dir-se-ia iminente o desenlace daquele drama entre os dois seres: um teimando alcançar o conforto do lar; o outro negando-lhe o tempo necessário, na ânsia de vir à luz.
No ventre de Maria a vida convulsionava-se, metendo-se a caminho.
Uma touceira de mato à sombra de um carvalho: chegara a hora e aquele era o lugar. Maria arriou o cesto e estendeu o xale sobre a relva; acocorou-se nele e deixou fluir de si a vida. Aos primeiros vagidos da cria, serenada a carne, uma paz grande invadiu a alma da mãe!
Só então as lágrimas desceram...
Segurando o cordão umbilical, cortou-o com uma lasca de pedra contra um calhau, livrando-se da placenta. Depois deu um nó no cordão, limpou-se como pode e embrulhou no xale o bebê. Agachou-se, pôs na cabeça o cesto e a criança no avental, segurando-lhe as pontas, como alças de uma bolsa. E seguiu. Marcava-lhe a boca um discreto sorriso de contentamento agradecido.
Na fábrica do Carvalhal, um rapazola lidava num monturo de carvão.
- Boas tardes, ti' Maria!
Maria não respondeu, porque não ouviu. Nem cheirou o ar fétido de sempre; seu olfato só captava os aromas do embrulhinho que levava ao regaço. Mais dois sentidos guiavam Maria: o olhar na estrada, em cada curva, em cada reta, avaliando as distâncias a percorrer; e o tato, sentindo o ritmo do caminhar sereno e firme e ligando-a ao que tinha no avental, junto ao ventre esvaziado.



Margarida voltava da feira.
- Ó Micas, viste a Maria?
- Qual Maria?
- A do Agostinho, pois que Maria havia de ser? Foi comigo à feira e voltou mais cedo.
- Vi-a passar agorinha mesmo com um cântaro de água à cabeça.
Margarida subiu a estrada, desaferrolhou a portaria, entrou, arriou a canastra no quinteiro. As crianças brincavam ali.
- Onde está vossa mãe? – perguntou-lhes.
- No quarto – disseram.
Margarida subiu as escadas. A porta da cozinha aberta, entrou, o lume aceso na lareira. Atravessou a sala e espiou pela porta entreaberta do quarto.
- Maria...
E Maria, sem interromper o que fazia:
- Vem, vem ver...
E continuou a lavar em água morna o seu bebê.



PS: Não pude apurar com certeza, mas tudo indica que esta foi a última gravidez de vovó Maria. O bebê veio a falecer seis meses após de causa não relacionada com as circunstâncias do parto.

  1. levada – canal de água captada num rio, geralmente para irrigação. Neste caso era para produção de energia elétrica.
  2. casal – grupo de casas.

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5 comentários:

Unknown disse...

Que lindo! Fiquei presa e pude vivenciar todos os detalhes, todas as emoções...
Meus parabéns, João!

Anônimo disse...

Amei. A leitura nos leva a lindas e saudosas lembranças. Avós, pais... infância. Lindo! Parabéns pra vó Maria, pela sua paciência, coragem, simplicidade e crença. Parabéns pelo escrito João. Muito bom!

Joao Antonio Ventura disse...

Anônimo, você definiu muito bem minha avó Maria. Me emocionou... Abraços.

mariza disse...

João, senti emoção ao fazer a leitura também. Vó Maria, é simplismente a figura retratada, de todas as mulheres que viveram numa época rica em vivência, sabedoria, simplicidade, educação, paciência, mas marcada por muito trabalho e muitas dificuldades. Venceram... isso mostra quanta garra tinham essas mulheres do passado.Muito bom. Essa anônima é tua amiga do face. Beijos Mariza

Joao Antonio Ventura disse...

Minha avó Maria foi uma grande mulher! Abraços, Mariza.

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