21 de jan. de 2014

Onde o vento faz a volta e mais além -7

Um gaúcho longe do chimarrão

Da parentela que foi chegando para o réveillon, o que mais me chamou a atenção foi o Galego. É casado com uma irmã de D. Laurita. Gaúcho de ascendência holandesa e tcheca, cabelo aloirado e roupas triviais, dança forró como ninguém, sempre conversador e enturmado. Em nada denuncia um gaúcho; em nada faz lembrar erva-mate, bomba e cuia.

Neguinho e Galego
É pecuarista em região próxima. Vindo de uma cultura mais sistemática e fechada, não teve dificuldades em adaptar-se à cultura deste Brasil grande e credita o fato ao temperamento cordial e alegre do povo brasileiro. Diz que esse jeito de ser do brasileiro só facilita o entrosamento de povos, o caldeamento de culturas. E isso é bom para o Brasil, diz Galego (perdoem não saber o nome).

Galego (sentado) e José Barbeiro
E vai por aí o nosso gaúcho. Está iniciando a inseminação artificial em seu rebanho e convenceu o José Barbeiro, um criador tradicional, a criar porcos enxertados de javali. Eu comi uma costela desse porco e é uma delícia, quase sem gordura. José já não quer outro porco.
Gaúcho dá outro exemplo: "Aqui não se ordenha sábado e domingo porque o Laticínio não recolhe o leite nesses dias. No sul de onde eu venho, usa-se o leite desses dias para fazer queijo. O que falta é informação".
Enquanto isso, em Redenção, é comum procurar queijo na padaria e não encontrar. Gaúcho acredita que é só questão de tempo e informação. Amém!

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20 de jan. de 2014

Onde o vento faz a volta e mais além - 6

Expedição ao milho verde
Último dia de 2013.  A manhã chegou envolta em névoa baixa. Francisquinho disse: “Névoa baixa é sol que racha”. E foi. Logo depois a névoa se dissipou e o sol veio rachando.
Iam matar uma novilha para a churrascada da passagem de ano. Não me apetecia o espetáculo e preferi ir com o José Barbeiro visitar o córrego e o tanque para piscicultura. Para tal calcei um par de galochas, gentilmente cedido pelo anfitrião. Quando voltamos a novilha já era descourada e havia outra missão em preparo: buscar milho verde para fazer pamonha e curau. Eu já havia ajudado a minha cunhada Neuza a fazer o doce de leite, mas apenas pegando a colher de pau e mexendo o leite no tacho. Nem mais podia fazer. Eu queria participar de alguma coisa, de algum procedimento na fazenda. Se por mais não fosse, ao menos para ter uma história pra contar. Quem ia cumprir a tarefa era a Juliana, acompanhada por um menino. Ninguém mais se dispunha? Tanta gente e Juliana vai quase sozinha?
Neguinho procurava voluntários. Apresentei-me. Em seguida também minhas duas sobrinhas, Gabriela e Daniela se dispuseram. O marido desta última, o Rafael, ia ao volante da F 1000, nosso pau-de-arara. Nem cogitava a necessidade de tanto aparato para ir ali, numa rocinha de milho… Vai ser moleza. Juliana ia na cabine, mas de última hora resolveu subir  à boleia. Melhor para mim.
E roda rolando na estrada. Perto da vila de Serra Azul bifurcamos noutra estrada, e mais além, noutra. Para quem, como eu, imaginava uma rocinha de milho ali adiante, já estava demasiado longe. Fui pensando no caso: em terras de pecuária, uma rocinha de milho e outros produtos corriqueiros é difícil e quase sempre longe. A pecuária extensiva também estava por trás do que veio a seguir: a primeira porteira. Gabriela desceu da boleia e abriu-a. Depois a segunda, Gabriela idem. Dali em diante compreendi a função do carona na cabine e passei a descer rapidamente para abrir porteiras e colchetes. E foram muitas porteiras e colchetes!
Já no sítio dos pais de Juliana, que estavam viajando, largamos o pau-de-arara e seguimos rumo ao milharal. Juliana no comando da expedição, a cavalo,  e eu atrás, brincando de cabo cerra-fila, cuidando da retaguarda da tropa, não vá um soldado se dispersar ou perder.
Próximo ao destino, a comandante apeou e amarrou o cavalo à sombra de um arbusto. Seguimos mais uns cinquenta metros a pé, embrenhamo-nos no milharal, onde preferi encher um saco com as espigas colhidas pelos outros. O sol rachava e rachava o meu entusiasmo! E eu não gostava de pamonha tanto assim! Mas restava o brio. Com as meninas, arrastei dois sacos de espigas até as proximidades do cavalo e sentei-me a descansar. Abelhas tiúbas (creio) entravam e saíam da fenda de um matacão chamuscado, o que indicava que elas refaziam a colmeia destruída anteriormente a fogo. Neguinho já me contara a história da expedição ao milho do ano anterior, quando foram atacados por um enxame de abelhas europa. Esconderam-se dentro do carro, mas os vidros não fechavam e o jeito foi sair correndo, para o lado que calhava, cada um por si e Deus por todos. Foi a salvação, pois as abelhas dividiram-se em perseguição aos fugitivos e, assim, não tiveram poder ofensivo suficiente para fazer vítimas. Afastei-me das tiúbas, apesar de parecerem pacíficas.
Quatro sacos de espigas. Juliana orientou a amarração dos sacos e o ajuste da carga ao cavalo. Iniciamos a volta. Mais à frente dois sacos foram ao chão, justamente aqueles que eu amarrara. Recomposta a carga, continuei na retaguarda da tropa, agora não só pela função de cerra-fila, mas a pedido do corpo. Próximo ao sítio, na estrada, deixei a soldado Gabi descansando sob uma árvore e segui no encalço do grupo. O cavalo e todos sumiram de repente. Segui pela estrada no intuito de descobrir a trilha de aceso ao sítio. Nada. Já pensava seguir até uma elevação da estrada para olhar o entorno, quando notei, à esquerda, a cúpula de um arvoredo conhecido: era o sítio. Que maçada! Logo eu, o cabo cerra-fila! Perdido! Desgarrado da tropa! Retornei, acessei a trilha e juntei-me aos companheiros, bem a tempo de beber água de coco providenciada por Juliana. Oh! delícia! A comandante ainda recolheu cocos verdes, abacates e ovos para levar á Camaçari.
Retornando, a maratona dos colchetes e porteiras! Por duas vezes abri colchetes e me fechei do outro lado. As meninas riam na boleia!
A esta altura os leitores já perceberam porque não apareceram voluntários para a expedição. E não só pelas abelhas europa do ano anterior.
Chegamos à Camaçari após o almoço. Não parei até que a carga estivesse na dispensa, eu mesmo carregando dois sacos no lombo.
Banhei-me e almocei. Estava moído. Prepararam-me uma rede à sombra do tamarindeiro. Deitei, procurando evitar uma réstia de sol no rosto. Desajeitei-me e fui ao chão, sob o  riso geral. Foi o último mico do dia.  

PS: A expedição não levou fotógrafo, por isso não há ilustrações.

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19 de jan. de 2014

Onde o vento faz a volta e mais além -5

A visagem Magnólia

A casa da fazenda tem apenas um banheiro, o que é plenamente  satisfatório para a família que ali vive. Porém em dias de festa como estes, com a chegada de mais parentela e convidados, o dito quarto de banho é pouco para a demanda. Na hora do banho, e também de outras necessidades, carece ficar à espreita, aguardando uma oportunidade. Antes que eu me adaptasse à circunstância e descobrisse um cantinho atrás do chiqueiro dos porcos, ficava, como os demais, de olho na porta do banheiro sempre que necessitava aliviar uma urgência sentida. Certa feita, ao anoitecer, vi a porta escancarada, entrei apressadamente, tranquei a porta e iniciei o alívio. Então me pareceu que havia alguém no box do chuveiro: eu via movimento de sombras como se alguém estivesse se enxugando ou vestindo a roupa. Olhei para cima, desconfiado que alguma mariposa esvoaçando em torno da lâmpada estivesse projetando aquelas sombras. Nada de insetos. Silêncio total. Mas havia alguém ali dentro. Que culpa tinha eu? A porta estava escancarada!
O jeito foi inclinar-me um pouco mais sobre o vaso e girar o corpo à esquerda, no  intuito de vedar à visão de outrem a imagem do instrumento em operação. Vá que fosse uma mulher ou criança!
Quem era eu não vi: abriu a porta do box, passou por trás de mim sem tossir nem mugir, destrancou a porta do banheiro e saiu, encostando-a em seguida.
Mais tarde, deitado na barraca, contei o acontecido à Rita; não sei se era homem ou mulher; criança não era – não seria tão discreta.

Eu e Neguinho, Francisquinho à esquerda
Pela manhã, à sombra do tamarindeiro, comentamos o caso. Não sei se era homem ou mulher, dizia eu, quando Neguinho atalhou, dizendo:
- Foi a visage.
- Como assim, a “visage”? Um fantasma?
- É moço. Muitas pessoas já viram, seu Zé também já viu. Era uma velha que morou na fazenda e morreu há mais de oitenta anos. Foi ao banheiro e estatelou-se no chão. Finou-se…
- E qual o nome da velha?
- Magnólia…
Neguinho é genro do José Barbeiro, eletricista, morador de Redenção e também trabalhador compulsivo. E nas horas vagas sempre alegre e divertido. Mas falou sério sobre a visagem.
- Com que então eu vim de longe a esta terra para ser assediado pela visagem da velha Magnólia? Mas rapaz!

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18 de jan. de 2014

Onde o vento faz a volta e mais além - 4

Breve história de José Barbeiro

A primeira impressão que tive foi a de um homem compulsivamente trabalhador. Mal chegado à fazenda, vi-o carregando uma braçada de folhas de palmeira para a cobertura que os filhos preparavam.

José é natural de Minas, mas foi criado em Natal, onde diz ter assentado praça no Exército Brasileiro, na década de 1960, exercendo o ofício de barbeiro. Fez curso de paraquedista, mas não o  concluiu, pois por três vezes o avião da Aeronáutica escangalhou. Também fez incursões pela Marinha… José fala muito desse passado militar, com entusiasmo e orgulho, conta histórias e lembra nomes de superiores e companheiros, até do seu n° de identificação, ensaia passos de ordem unida e bate continência; tudo em linguagem vivaz, apressada e escorregadia, que ao fim é difícil saber onde acaba a luz e começa o farol. O certo é que José foi e é um grande oficial barbeiro, a ponto de o ofício se incorporar ao nome.
Deu baixa do exército e voltou a Minas, de onde partiu para o interior do país. Chegou ao Pará, parou. Em Redenção. Montou salão de barbeiro e trabalhou, trabalhou. E casou. E no seu ofício conheceu os grandes do lugar.
Em demarcação de limites entre fazendas da região sobrou uma “cunha” de terra que não interessava aos donos, nem lhes fazia falta. Deram essa nesga de terra ao José Barbeiro.

José partiu para o seu “latifúndio” e começou a investir. Nessa região a terra já era muito valorizada e José vendeu-a por bom dinheiro, foi mais além, onde havia terras baratas, e comprou várias dezenas de alqueires, mais tarde acrescentados de outros tantos, e depois mais tantos… É a Camaçari de hoje.

- E tudo com o meu trabalho, diz José, orgulhoso. – Não é posse, não é invasão, não é grilo. Tudo comprado com papel passado e pago com o meu dinheiro, com o meu trabalho. E não quero sair daqui. Não quero Belém, não quero nenhuma capital. O meu lugar é aqui. Só quero poder me comunicar com qualquer lugar e a qualquer hora, quero a luz elétrica pra mecanizar a ordenha e aumentar a produção, quero...
Aleluia, José Barbeiro!

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