AO PÉ DO LUME
Ceávamos todos à roda de um alguidar: (1) batatas, couve ou repolho e peixe salgado – carapau ou sardinhas – e às vezes até bacalhau (naquela época não era tão caro como hoje). Em seguida rezávamos o terço. Por fim vinham as estórias ao pé do lume. Estórias da tradição oral, que mamãe repetiu muitas e muitas vezes, sempre com o mesmo sabor de novidade. De sua boca para a nossa imaginação desfilaram reis e rainhas, príncipes, princesas, filhos exemplares e outros nem tanto, heróis valorosos, madrastas e vilões, fadas, bruxas, lobisomens...
Impressionantes também eram as estórias de encantamentos: tesouros fabulosos encantados (4) pelos mouros, (5) que eu não sabia bem quem eram, mas deviam ser gente muito rica e muito esperta e poderosa, pois ninguém conseguia pôr as mãos em tais riquezas. Sempre acontecia alguma coisa para impedir o desencanto. A minha mente de menino não se conformava com tamanha falta de sorte daquelas pessoas que estiveram muito perto de conseguir.
(1) alguidar – vasilha de barro que alarga do fundo para as bordas.
(4) encantados – protegidos por meio de encantamento ou magia.
(5) mouros – árabes invasores da península Ibérica. Sendo banidos para o sul durante as Guerras de Reconquista, foram definitivamente expulsos do Algarve, último foco de resistência, em 1252. A tradição oral lhes atribui o encantamento de suas riquezas abandonadas ao partirem.
A GRADE DE OURO
Ali mesmo na aldeia havia um desses tesouros, no Caima, ao lado da ponte; nesse lugar o rio se estreitava entre os lajedos que sustentavam o arco maior da ponte e as águas pareciam negras e o fundo não se via. Foi aí que os mouros encantaram uma grade, dessas usadas na lavoura, porém de ouro maciço!
Um morador da aldeia, já falecido, tentou quebrar o encantamento da grade. Não era uma pessoa igual às outras: sabia ler e escrever e conhecia muita sabedoria, até o livro de São Cipriano. (1) Ele sabia que para retirar a grade era preciso ler o tal livro em sexta-feira de lua cheia, à meia noite, ocasião em que a grade costumava aparecer. No dia certo, próximo à meia noite, levou para lá, além do livro do santo, uma junta de bois, correntes e ganchos para puxar a grade. Tudo preparado, iniciou a leitura...
À meia noite em ponto um clarão iluminou as águas: era a grade aparecendo no fundo. E ela veio subindo, devagarinho, até à superfície. Ouro maciço, reluzente, de encher os olhos de qualquer cristão! Correntes e ganchos na grade, era só tanger os animais e ficar rico! Era... mas... desgraça! A grade teimava em não sair. O homem, confuso, aguilhoava os bois:
- Força, Marrão! Avante, Mimoso! Ficaremos ricos, carago!
Tudo em vão: a grade começou a afundar, devagarinho, tal e qual viera à tona. E arrastava os bois consigo! Só houve tempo para desatrelar as correntes e salvar os bois. A grade, essa, desapareceu no fundo para nunca mais ser vista!
O homem ficou olhando fixamente as águas, negras como dantes, na esperança que a grade ressurgisse, mas nada. O que dera errado, se fizera tudo o que o livro...? O livro! Para atrelar os bois à grade, parou de ler o livro! Santo Deus!
Ainda a olhar as águas, o infeliz sentou-se no lajedo e chorou...
(1) São Cipriano – O feiticeiro – homem dedicado ao estudo das forças ocultas durante parte de sua vida, converteu-se ao catolicismo após o encontro com a jovem (Santa) Justina, sendo com ela martirizado e canonizado. Sua popularidade excedeu a fé cristã devido ao famoso Livro de São Cipriano, uma compilação de rituais de magia. Homônimo e contemporâneo de outro santo católico – o Papa Africano – sua vida, por vezes, confunde-se com a deste e vice-versa.
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Me faça esse carinho
Uma palavra um conto
Há 4 dias
2 comentários:
É impressionante, João, como você consegue captar as impressões de quem está a descobrir o mundo ("...eu não sabia bem quem eram, mas..."). Tudo realmente é meio nebuloso e mágico nessa época, ainda mais quando recuperado pela memória, em "cacos".
Comecei hoje a ler seu livro. Atualizei a imagem no meu blog no "Estou lendo". Pena que lá a imagem não ficou do tamanho que aqui está
:(
Eu o chamo de João, mas vc é mais Antonio, não é mesmo? Eu sempre me atrapalho com nomes compostos... rs
Abraço! Ótima semana pra vc!
Sim,sou mais Antonio; desde que me conheço por gente, entre os familiares, sou "Toninho". Também me atrapalho: nas apresentações não sei se digo Antonio, João Antonio ou Ventura - o nome de guerra de quando estava na ativa. Também estou lendo o seu livro, com bastante calma. Abraços.
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