17 de jan. de 2014

Onde o vento faz a volta e mais além - 3

Aventura na serra

Era sempre um dos primeiros a levantar, ainda no lusco-fusco da manhã. E sendo a fazenda produtora de gado e leite, minha primeira agenda na Camaçari foi ir ao curral apreciar a ordenha, a cargo do Veinho e do Neca, filhos do José Barbeiro. Depois do bom café da manhã, com cuscuz de milho e leite fresquinho, preparado ou orientado por D. Laurita, conheci outro personagem da fazenda – o Pedrinho – que andava a criar alvoroço entre as crianças no pátio, e segundo dizem, protegido de Juliana, a nora de Laurita, que entretanto não confirma a proteção ao sapinho. Mas dizem que o bichinho costuma agasalhar-se na cozinha e Juliana não se incomoda, até mesmo faz vistas grossas.

Pedrinho
Mas a aventura do dia já estava combinada desde o dia anterior: subir a serra que ladeia a Camaçari ao longo da estrada. Calcei um tênis e fui com os outros, adultos, jovens e crianças. Rita comigo. A serra não era grande nem alta, pouco mais que um outeiro, e pontilhada pelos matacões já nossos conhecidos. Essas pedras só ajudavam, serviam de degraus as menores e de patamares as maiores, onde sempre se podia descansar. Apesar do esforço, só via alegria e risos em quem subia. Andar no mato, subir e descer encostas, pode ser banal ao sertanejo, mas para nós, da cidade, é aventura. Talvez por esse gostinho exótico, teve gente que subiu “bufando que nem peba”, mas nem por isso descontente.

A Camaçari ao fundo
Degraus e patamares
Fui ao matacão mais alto e olhei em volta. Por trás havia outra serra, mais alta e mais difícil, onde brota a água que abastece a fazenda. Pretendíamos chegar até essa fonte, mas já não via disposição nos parceiros. Descemos, pois.
Ao descer, por um breve instante lembrei da leitura que fez a delícia da minha pré-adolescência: Expedição aos Martírios, literatura juvenil de Francisco Marins. Martírios é a lendária serra por onde teria passado o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva – o Anhanguera –  nos sertões de Goiás. Em Martírios o ouro brotava do chão! Nesta serra que eu descia, o que brotava do chão eram as formigas de fogo, miudinhas, vermelhas e terríveis em suas ferroadas. Safei-me delas olhando atentamente onde pisava.

Fim da aventura
No almoço, galinha caipira e rijões de porco, preparados no tacho, como outrora. Eita, trem bão! E uma geladinha, que ninguém é de ferro.
A modorra da tarde, porque todas as tardes são modorrentas, principalmente para quem não tem obrigações a cumprir, foi quebrada por estrepitosa trovoada e chuva grossa. Parte do prolongamento da varanda construído no dia anterior, ruiu. O nosso acampamento também sofreu: quase desaba o plástico que o cobria e uma das barracas teve de ser desmontada. 
Mas chuva de verão é passageira e pouco depois o forró já sacudia na varanda.

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15 de jan. de 2014

Onde o vento faz a volta e mais além


Segunda etapa da viagem

Íamos passar o réveillon numa fazenda de amigos a 130 km de Redenção. Em estrada de barro. Nada menos de quatro horas de viagem na boleia de uma F 1000 – o nosso pau-de-arara. Acordamos cedo para reunir a tropa e ajeitar a bagagem: barracas, colchões infláveis, churrasqueira, carvão, um razoável estoque de cervejas e refrigerantes, gelo, caixas e mesa de som, um pequeno gerador a diesel, lanternas e muitas outras miudezas necessárias, além de roupas e utilidades de uso pessoal. Era tanta a bagagem e tão pouca  a F 1000, que mal pudemos nos acomodar; éramos mais de quinze, entre crianças e adultos, e ainda o Nick, um cachorrinho poodle. Rafael quis ficar na cidade arrastando a asa às moças.

Preparando a viagem
E roda rolando na estrada.
Primeira surpresa: paramos numa cancela com guarita e funcionário a cobrar pedágio. Estou acostumado a pedágios, mas aquele não era cobrado pelo governo ou empresa legalmente constituída e licitada para tal, mas por particulares, donos das terras pelas quais enveredava a estrada. Fizemos uma “vaquinha”, pagamos o leite e seguimos. Não obstante, a estrada, dali em diante, só piorava. Na boleia, alegria.

A festa na boleia
E a paisagem, cheia de buritis e vegetação variada e viçosa, foi dando lugar a pastos cercados, entremeados por campos aparentemente livres, ou desprovidos de cercas. Enquanto passávamos, tranquila ema desfilava no campo. Mais à frente, matacões de granito (?) afloravam da terra entre o verde da vegetação rasteira; de variados tamanhos e formas arredondadas, alguns semelhavam ovos de algum ser gigante e desconhecido. Dali em diante estes seres insólitos e inesperados para mim, e que pareciam vigiar a estrada e a quem nela se aventura, se tornaram uma constante na paisagem.
Sobranceiro à estrada, na encosta de um pequeno outeiro, um desses insólitos matacões de granito. Pousadas nele, duas corujas arregalam os olhos. E um par de araras, no cimo de um pau de árvore, nos vigiam em silêncio. E o nosso pau-de-arara parado na estrada. Mais um pedágio!, fantasio eu.

O registro da nossa passagem
Não era pedágio, nem estávamos escangalhados, não. Era para pichar  no matacão uma inscrição assinalando a passagem da nossa comitiva. Diogo e Pedro, que para tal traziam spray branco na bagagem, providenciaram a inscrição: PAPIMARARIO 2013. Pará, Piauí, Maranhão e Rio. Nossa comitiva tinha representantes de grande parte do Brasil.
Rita saiu da cabine e subiu na boleia, ajeitando-se ao meu lado e misturando os seus pés aos vinte e quatro que disputavam, uns por cima outros por baixo, meio metro quadrado de espaço. Mas a boleia era mais animada! 
E roda rolando novamente.
Eu sabia que íamos para um lugar que não tinha luz elétrica, por isso observava a rede ao longo da estrada; antes completa, ativa, agora só os postes apontavam para o alto – uma esperança para as gentes daqueles lugares. E para mim sinal que não demorávamos a chegar.Mas ainda demorava!
Uma construção abarracada à beira da estrada, encimada por uma placa de madeira rústica onde se lia, em letras abertas a fogo: Bar risca a faca. Propaganda ou advertência? Desejei parar e tomar uma cerveja geladinha, mas em face da informação da placa, era melhor não. E mais agora, que a vontade  de chegar estava estampada na cara de todos. Urgia chegar.  Mais além, um bando de urubus cercava uma carcaça bovina e um odor putrefato encheu o ar. A viagem estava ficando sinistra! Urgia chegar! O pó da estrada já fazia lama no canto dos meus olhos!

Urgia chegar
Finalmente a vila agrária de Serra Azul, com três ruas em cruz e duas ou três dezenas de construções.
Mais 2 km de estrada cada vez pior e o nosso pau-de-arara traspôs a porteira da fazenda Camaçari. Os homens da casa construíam um prolongamento da varanda, com lona e folhas de palmeira, para maior conforto dos convidados. Era hora do almoço: ensopado de galinha caipira.

Forró na varanda
Pela tarde montamos o nosso acampamento e ao anoitecer roncou o gerador a diesel. E os equipamentos eletrônicos soltaram o som. E o forró foi noite a dentro.


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12 de jan. de 2014

Onde o vento faz a volta e mais além

A primeira etapa da viagem

A partir do Santos Dumont, uma hora e vinte minutos de voo. Havia chovido forte em Brasília, aeroporto fechado, o avião circulou durante quinze minutos antes de aterrissar. Em consequência, todas as conexões atrasaram. Mais uma hora até Palmas, a cidade do pequi e das longas distâncias. Daí em diante tudo se complicou. Perdido o horário do ônibus, fomos aconselhados a seguir para Guaraí, às margens da Belém-Brasília, onde haveria mais opções e já minha velha conhecida. Haveria mais opções… se não fosse fim de ano, muita gente viajando. Todas as opções lotadas, passagens só no dia seguinte. Ou esperar a vam que sairia de Palmas às dezoito horas, com previsão de chegada às vinte e duas horas e o risco de já chegar lotada. E essa condução só nos levaria até  Conceição do Araguaia. Daí em diante eu contava com os parentes da minha Rita, que viriam de Redenção para nos resgatar. Ainda tentei uma lotada de táxi até Conceição por quase o dobro do preço das passagens; quando a lotada se completou, o preço já tinha subido. Aporrinhei-me com essa inflação repentina (mas previsível) e declinei da lotada. O jeito era pernoitar e prosseguir no dia seguinte. Mas a minha Rita já confabulava ao telefone, seus parentes  viriam nos buscar em Guaraí. Em boa hora, pois a vam realmente veio lotada de Palmas.

Canteiro central de uma avenida em Palmas
 (foto tirada na volta, porque na ida não houve chance)
As lanchonetes já fechavam as portas. O taxista aproximou-se, lá pelas tantas, sondando a possibilidade de reatar a lotada antes recusada e confiante na minha cara descorçoada pela espera.
- E aí, conseguiram alguma coisa?
- Os parentes da minha mulher veem de Redenção nos buscar. Não demora e estão chegando.
Só Deus sabe o gostinho com que lhe dei essa resposta!
Chegamos na madrugada do dia 28/12. Eu, Rita, Rafael e os parentes redentores Pedro e Diogo. Em Redenção, Sul do Pará, no coração geográfico do Brasil ou bem pertinho. Mas o destino final era mais além. Prosseguiríamos no dia seguinte.


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4 de dez. de 2013

Vô Tônico perfumado

"Árvore das Nações"- original pintado com a boca por
 José Henrique Breda, dos Pintores  com a boca e os pés. 
Yasmin passou um fim de semana comigo. Fui buscá-la à porta do trabalho de sua mãe, em São Cristóvão. Já em casa, não demorou muito e vasou:
- Vô, era pra ser segredo mas eu não aguento, vou falar: comprei um presente de Natal pra você – um perfume.
A mãe de Yasmin, para garantir um dindim extra, está vendendo cosméticos e perfumarias. A menina tinha uns dinheirinhos, pacientemente poupados para ocasião de mor importância, e resolveu gastá-los presenteando o avô. O que tinha não era suficiente, a mãe concedeu-lhe um desconto abrindo mão de parte da sua comissão e a conta fechou. Escolheu e encomendou o perfume, que me daria quando, no domingo, fosse levá-la em São Gonçalo, onde mora  agora (só até o fim do ano, quando volta para o Rio).
Na volta, depois do trem, do ônibus e da barca, paramos perto do Terminal  Rodoviário de Niterói, onde embarcaríamos para São Gonçalo. Frente a nós havia uma tenda de lona, uma espécie de mini-circo que não costumava estar ali. Era uma livraria. Entramos. Encontrei, numa das bancas, uma linda edição da “Arca de Noé”, de Vinícius de Moraes, que há muito desejava dar a Yasmin. Comprei-a e dei-lha, como presente de Natal.
Já em sua casa, e dando-me o perfume, disse-me ela:
- Vô, eu sei que você não costuma usar perfume mas este você tem de usar, foi dado com muito carinho e eu quero você cheirosinho. É assim, bota um pouquinho nos pulsos, no pescoço e atrás das orelhas, tá?
Confesso que nunca desenvolvi o hábito de usar perfumes, nem quando saía para namorar (e já lá vão muitos anos). Até desodorante raramente usava. Agora não tem jeito, tenho que usar o perfume que Yasmin me deu com tanto gosto e à custa da dilapidação de seu pequeno (grande!) tesouro. Mal sabe ela que o meu perfume é ela mesma, os meus filhos e a minha Rita, e o fato de, ao longo da vida, não ter feito inimigos nem  alimentado ressentimentos e rancores. Isto é o meu perfume.
Mas, caríssimos, se me encontrarem por aí exalando um discreto perfume, não estranhem. Estarei cumprindo uma determinação de Yasmin.

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