Guiados por minha tia Maria e o Galrão na rabiça (1), os bois forcejavam à charrua (2), que ia desnudando a terra em sulcos profundos de ponta a ponta da leira; depois voltavam rasgando outro sulco, e repetiam essa lida num vai-vém vagaroso mas consistente, até que terminassem toda a lavra. As beiras, onde a charrua não alcançava, amanhavam-se à enxada, por minha mãe e por quem mais se dispusesse. Uma aragem fresca começava a soprar, aliviando gentes e animais. Mas ainda faltava a gradagem, procedimento de destorroamento e uniformização do lavrado, feita com uma pesada grade de madeira com dentes de ferro. O Galrão desatrelou os bois e levou-os à sombra das oliveiras. Chegava a merenda.
Sentamos todos no chão, ao redor do prato de rijões (3) e broa de milho postos sobre uma toalha. O ti’Galrão, marido da tia Maria, viera, como sempre, lavrar as nossas terras do Mortal, pois tinha bois e arado, preparando-as para a semeadura. Comíamos em silêncio (é feio falar com a boca cheia). O ti’Galrão, após engolir um naco de carne , falou:
— Ó cunhado, sabes aquele batizado que eu fui, o do menino que ia chamar-se Andúbio?
— Pois...
— Foi um grande sarilho (4) o batizado do menino: o padrinho queria dar-lhe por nome Andúbio, mas o pai queria porque queria Andubinho. O padre ficou a esperar uma decisão e os dois a discutir em frente à pia batismal e na presença dos convidados, se o menino seria Andúbio ou Andubinho...
Meu pai parou de comer, aparentemente interessado naquela trapalhada que o Galrão contava e, esboçando um ligeiro sorriso, perguntou:
— E a mãe da criança, que dizia?
— Nada, coitadinha! Estava envergonhada com os dois a discutir. Para ela tanto fazia, se Andúbio ou Andubinho.
— E afinal, que nome recebeu o menino? – perguntou papai.
— Andubinho. O pai do menino não deixou por menos: An-du-bi-nho!
— Pois seja – disse papai, passando um garrafão de cinco litros ao meu tio.
— Ora, viva! – exclamou o ti’ Galrão satisfeito, sorvendo em seguida uns goles de vinho diretamente do gargalo, como era o hábito em situações de improviso como aquela.
Só então compreendi a história do batizado.
Ouvi essa história outras vezes. Era uma brincadeira geralmente feita por convidados de um jantar ou ceia, para alertar o anfitrião quanto à oportunidade de começar a servir o vinho (“Anda o vinho!”). Longe de desconhecer o momento oportuno, o anfitrião até participava da pilhéria, como se fora um ritual preparatório à degustação.
(1) rabiça – braço do arado, empunhado pelo lavrador.
(2) charrua – tipo de arado.
(3) rijões – fritos de carne de porco.
(4) sarilho – complicação, confusão.
COMENTE
Me faça esse carinho
Uma palavra um conto
Há 3 dias
0 comentários:
Postar um comentário