Naquele sábado não fui com as minhas irmãs levar as ovelhas ao pasto. Nem com papai e mamãe, que tinham ido à feira de Santo Amaro comprar leitões. Fiquei em casa por um só motivo: Aniceto e seus homens trabalhavam na reforma da nossa casa. Curioso, gostava de observá-los preparando argamassa, rebocando, queimando a cal virgem, caiando, elaborando as tintas (naquele tempo não havia tintas já prontas) ou pintando. Eu não perdia nada dessa lida. Foi quando ecoaram os primeiros gritos:
- Acalderrei! É o fim do mundo! Acalderrei! (1)
Fui na amurada do jardim espiar; uma velha ajoelhada no meio da rua (se não me engano, a avó dos Carriços) com as mãos estendidas para o céu, aos prantos, suplicava desesperada:
- Ai, Jesus! Perdoai os nossos pecados, Senhor Jesus!...
Olhei o céu, estava azul e límpido como raramente se vê, a não ser por um diminuto ponto brilhante (uma estrela?) cruzando o firmamento de ponta a ponta, deixando atrás de si um risco branco e fino, semelhante a uma trinca ou rachadura; outro ponto brilhante começava a riscar o céu em sentido transversal ao primeiro; e mais outro e outro mais... O céu ficou todo riscado, parecendo uma casca de ovo rachada!
Estrelas à luz do dia, deslocando-se velozmente (não eram estrelas cadentes, disso eu tinha certeza) e rasgando o céu em muitos pedaços! Algo de sobrenatural parecia estar acontecendo! Seria o fim do mundo? “De mil passarás, a dois mil não chegarás”, teria dito Nossa Senhora, segundo minha mãe. E a largura das rachaduras aumentando! E o céu aos cacos, prestes a desabar!
A aldeia estava em polvorosa! A velha ajoelhada levantou-se e correu ladeira abaixo, sempre a gritar “ai, Jesus... ai, Jesus”. Mulheres e crianças corriam em direção a suas casas: se o mundo ia acabar, melhor seria estar perto dos seus. As minhas irmãs chegaram tangendo as ovelhas em correria. Assustadas, me contaram que estavam brincando de
santinha e pensaram ser castigo por estarem a brincar com as coisas do céu.
A barafunda atingiu outros lugares e até a feira de Santo Amaro virou um caos: correria para todo lado, barracas desabando, gritaria, choro... E para piorar a confusão, os animais à venda soltaram-se e os aproveitadores saquearam a não poder mais. Um inferno!
Eu não entendia nada do que estava ocorrendo no céu, todavia permaneci tranqüilo durante aqueles momentos extraordinários. E a razão era simples: quando tudo começou, o Aniceto olhou o céu, esboçou um ligeiro sorriso e retornou ao trabalho. Se ele permaneceu calmo, por que eu iria afligir-me?
Não durou muito, porém, aquela ameaça do céu: as rachaduras, alargando-se, diluíram-se no azul celeste e desapareceram. Sumiram também as estrelas que as provocaram. Teria Jesus ouvido as preces dos aflitos e desesperados? Teria Deus lhes perdoado os pecados? Eu não sabia, mas o céu estava novamente azul e límpido como dantes e a aldeia sossegada.
Alguns dias depois ouvi um comentário na loja do Grandela:
- Foram os aviões-a-jato de Figueira da Foz. Está no jornal do Aives...
João Aives era o homem mais bem informado da aldeia: recebia semanalmente um jornal pelo correio. Morava do outro lado do Caima, em frente à ponte, aparecia pouco, falava menos ainda, mas sabia de tudo. Estava no jornal...
E foi isso. As tais
rachaduras nada mais eram que os rastros de gases deixados pelos aviões-a-jato voando em grande altitude. A fuselagem metálica dos aviões e os gases refletiam a luz solar, tornando-os brilhantes e dando a impressão de estrelas rasgando o céu. A ignorância e a desinformação fizeram o resto...
(1) Acalderrei! – corruptela da expressão “Acá, El Rei”; pedido de ajuda; socorro.
COMENTE
Me faça esse carinho
0 comentários:
Postar um comentário